“Me descobri trans e, desde então, minha cabeça tem tido um pouco mais de sossego, de paz”

Andrei de Lima, 36 anos,  estudante, agricultor e integrante da Ocupação Terra e Vida do MST, conta sobre seu processo de descoberta e das dificuldades impostas pelo preconceito

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Como é estar em um corpo e não se reconhecer? Como é enfrentar olhares, questionamentos e apontamentos simplesmente por ser quem se é. O preconceito vivido pela população LGBTQIA + é uma realidade que assola, prejudica e que infelizmente faz vítimas. Aos 36 anos, o estudante Andrei de Lima (nome social), morador da ocupação Terra e Vida, em Passo Fundo, conta como foi a sua luta para se reconhecer enquanto indivíduo trans e a importância que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) teve nesse processo.

 “Quando me assumi lésbica pensei, agora vou ter paz, aí fui a um encontro do MST no Paraná. Vi que ser trans eu estava secundarizando, que aquilo ali mais tarde poderia me trazer uma depressão ou coisa pior, então, ainda em tempo, foi algo que consegui debater e me reafirmar, porque ser lésbica só não bastava, me descobri trans e, desde então, minha cabeça tem tido um pouco mais de sossego, de paz”, conta.

Andrei nasceu em Carazinho e ficou órfão ainda criança. “Sou órfão desde os meus nove anos, tenho irmãos, mas são distantes, nós nos espalhamos por causa de um problema familiar. Mas tenho uma filha de 15 anos, que não mora comigo, vive em Carazinho. Cresci trabalhando de empregada doméstica nas casas, meu pai era cego e minha mãe alcoólatra. Quando fiquei órfão fui para uns conhecidos, eu morava na casa onde trabalhava, ninguém cuidava de mim, mas fui me criando, trabalhando e estudando até que ingressei no magistério”, diz.

Andrei mora sozinho, mas diz que a filha já o visitou na ocupação. “Ela já veio me visitar e acha muito sofrido, mas entendo também. Ela entende, me aceita, a sociedade impõe que o filho tem que ter um pai e uma mãe, mas expliquei que a família dela é diferente”, disse.

Dono de si

Para Andrei a falta de acesso à informação foi um dos motivos na demora para se assumir trans.

 “Eu morava no interior e não tinha muita orientação sobre o assunto, por isso eu secundarizei durante muitos anos da minha vida. No MST que eu consegui me assumir e viver isso, eu tinha muito receio da sociedade. A minha base tem sido o MST, dessa forma consegui me identificar e me reafirmar a partir de outros sujeitos também que no MST conseguem ser o que são”, disse.

Acompanhamento psicológico

Andrei ressalta a importância do acompanhamento psicológico e que, na medida do possível, procura ajuda para enfrentar situações de rejeições em diferentes ambitos da sociedade.

“É complicado, eu vejo famílias que não aceitam e muitos acabam caindo na prostituição ou em outra coisa, então, a partir desses sujeitos que a transgenia, você não se identifica com o teu corpo, é um processo que com a tecnologia e o avanço na ciência estão ajudando, mas a gente tem que conhecer porque é um processo de transformação do corpo, tem que ter uma certeza, estar seguro psicologicamente, precisa de um acompanhamento médico direto, mas é algo que quero viver, ter as mudanças”, pontua.

Enfrentando o preconceito

A forma como a sociedade vê a população trans faz com que muitas pessoas sofram preconceito, manifestado de diferentes maneiras. “A gente sofre muito preconceito, às vezes alguns são mais sutis, outros mais grosseiros com comentários ‘não sou nada contra, tenho amigos, mas não gosto que seja na minha frente’. Hoje quase como professor entendo que é um processo. Às vezes a gente houve reproduções do que acontece em casa, opinião de algum familiar. Às vezes nem a família da gente aceita, então entendo que a sociedade também seja algo difícil, mas é mais complexo para entender como a sociedade contribui com isso e ainda cria mecanismo para excluir ainda mais”, diz.

Estudos e trabalho

Morando há 7 dos 10 anos de história da ocupação em Passo Fundo, Andrei está prestes a concluir o curso de licenciatura em História. Ele divide o tempo entre os estudos, o trabalho no campo e também no restaurante de um shopping em Passo Fundo. “Estudo na cidade de Viamão, já estou finalizando o meu TCC, eu faço por meio do Instituto de Educação Josué de Castro - IEJC que é uma escola de campo do MST e que tem parceria com a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Quando chego da faculdade, a primeira coisa que faço é recuperar os cultivos, potencializando o que cultivei, além disso trabalho no restaurante, no shopping e também na militância do MST”, conta.

As dificuldades encontradas pela população LGBTQIA + no mercado de trabalho é destacada por Andrei. “A gente assume locais de trabalho invisibilizados, é difícil você ter a mesma oportunidade que uma pessoa hétero, mesmo tendo o mesmo grau técnico. A gente já é pobre, já sofre preconceito e ainda ser LGBTQIA + é mais difícil ainda”, afirma.

Acesso à terra e sonhos

Sobre o sonho e os planos para o futuro, Andrei conta que espera se formar e viver com a produção de alimentos orgânicos. “Meu sonho é me formar me emancipei fazendo esse curso, mas eu gosto de lidar na terra e quero viver disso. Ter uma linha de produção de alimentos, de abobrinha, batata, feijão, mandioca, mas que eu plantasse e tivesse onde entregar alimentos saudáveis”, finalizou.

Ocupação Terra e Vida

A ocupação Terra e Vida está situada em Passo Fundo, na comunidade de Santo Antão. A área pertence a Maurício Dal Agnol e foi ocupada em abril de 2014, durante a Jornada Nacional de Luta pela Reforma Agrária. O grupo ocupante reivindica a criação de assentamento, por conta de uma dívida de Dal Agnol à Fazenda Nacional. Em 2019 um acordo com Dal Agnol e o MST acompanhado por membros da Renap - Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares e CDHPF - Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo, suspendeu a reintegração de posse da área.

 

 

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