Quilombolas temem que novas tecnologias

Comunidades têm medo de perder as tradições

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Manter a tradição. Esse é um desafio imposto às comunidades quilombolas. A tarefa torna-se mais difícil na medida em que os mais jovens passam a ter acesso e domínio sobre as novas tecnologias na rotina do mundo moderno como os computadores e os smartphones. Os quilombolas mais tradicionais também são obrigados a conviver com a migração de amigos e parentes para grandes cidades na busca por empregos.

Apesar de tudo isso, os quilombolas que aderiram ao estilo de vida do século 21 não escondem a admiração pelos mais velhos e o orgulho das origens tem vencido em muitas comunidades. Para o diretor do departamento de proteção ao patrimônio afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares (FCP), Alexandro Reis, a manutenção da cultura nas comunidades quilombolas foi uma questão de sobrevivência.

“Como o Estado abandonou essas populações, a única forma para a comunidade poder sobreviver e enfrentar as dificuldades foi exatamente preservar sua cultura, suas raízes, seu modo de falar, seu modo de produção, de relacionamento, poder estarem juntos para enfrentar uma situação muito difícil”, explicou Reis.

Em Santiago do Iguape, interior da Bahia, que se reconheceu quilombola há poucos anos, os jovens fazem questão de não deixar a herança dos antepassados esquecida. O grupo musical afro Bantos traz nas letras das músicas ensinamentos sobre a escravidão, a tradição oral e a importância de valorizar as origens. “A música foge da alma. Nenhum ser humano consegue viver sem a música, então essa foi a forma que nós encontramos de ligar as nossas raízes com a juventude que vem chegando agora, que tem poucos ensinamentos da nossa realidade”, conta o integrante do grupo, Givanildo Bispo .

“Às vezes, se a gente parar para contar a história dos nossos ancestrais, das nossas raízes, as pessoas não querem nem ouvir. Mas acabam parando para ouvir uma boa música e os jovens vão aprendendo quem foram os avós deles, os pais deles, de onde vieram, quem são”, destacou Bispo.

Na Comunidade Kaonge, também na Bahia, os jovens trocam muitas experiências com os mais velhos e não têm a menor vontade de deixar os hábitos e tradições para trás. “Só em escutar as histórias dos nossos ancestrais é mais um motivo para a gente ficar na comunidade. Mas tem que ter resistência, dar continuidade, sempre vivenciar, acompanhando, participando de todos os núcleos de produções - forma de organização das comunidades da região em que todos participam de atividades produtivas como pesca, cultivo de plantas e produção de farinha -”, diz a jovem Jorlane Cabral de Jesus, de 28 anos.

Para ela, se os jovens começarem a sair da comunidade, a tradição corre riscos. “O risco é imenso. Não quero nem pensar nisso. Eu não tenho filho hoje, mas quando eu tiver, vou fazer de tudo para ele ficar na comunidade”, disse a jovem. “Vou querer que ele dê continuidade, que participe das reuniões, porque o que faz o jovem hoje é a arte. Se a gente não participar da arte, a gente fica fora de tudo.”

Edmeia Batista Costa também é da Comunidade Kaonge. Ela tem 26 anos e uma enorme vontade de passar pra frente as tradições. “O jovem tem que ter na cabeça que ele precisa continuar a ancestralidade dos antepassados e que ele não pode deixar de jeito nenhum acabar a cultura da comunidade”, destaca.

O trabalho da Comunidade Kaonge para manter os jovens é grande. Autoestima e orgulho do legado são lições que os mais velhos ensinam e que são reforçadas com a organização social da comunidade. A líder espiritual kaonge, Juvani Jovelino, conta que o abandono da comunidade, pelos mais jovens, sempre foi uma preocupação. “Os mais velhos estão aí e quem vai dar continuidade ao trabalho? Os jovens têm que aprender o que a gente faz, têm que dar continuidade. Por isso que eu digo: eles têm que ficar aqui na comunidade, falando a nossa língua”.

No Muquém, a comunidade quilombola mais próxima do local onde era o Quilombo dos Palmares, em Alagoas, uma grande parte dos homens trabalha no corte de cana. Alguns, fora do estado. Os jovens já começam a sair em busca de emprego nas cidades próximas. E os que ficam, já não se interessam pelas tradições.

A comunidade é conhecida pela produção de cerâmica. “A nossa preocupação maior é realmente que os jovens não têm interesse em fazer o artesanato. Alguns têm até vergonha de trabalhar com o barro”, contou a líder comunitária Dorinha Cavalcante. Ela receia que, quando os artesãos mais idosos Para nós, há uma preocupação muito grande se quando os artesãos, já idosos pararem de trabalhar toda a cultura local acabe.

“É por isso que a gente está com um trabalho constante de incentivar esses jovens e mostrar para ele a importância da cultura da cerâmica. Acabando a cerâmica, acabando os artesãos, automaticamente a comunidade vai ficar esquecida”, acrescentou Dorinha.

A lavradora da Comunidade Kalunga Aurea Paulino dos Santos tem 28 anos. Ela entende de raízes e ervas medicinais, tem roça e ensina aos filhos o que sabe. Mas ela teme o fim das tradições. “Quando eu era menina tinha tradição que hoje ainda tem, mas está diminuindo. Tem as rezas, devoção que a gente fazia que se a gente adoecesse, se apegava com aquele santo e a gente melhorava, então a gente ficava sendo devoto. E hoje isso diminuiu muito”, conta.

Áurea conta que hoje em dia quem adoece na comunidade vai direto para o hospital e não procura os tratamentos tradicionais com ervas. “Se for desenganado do hospital, não corre atrás dessa devoção que corria antes. Até quando eu estava com 10 anos, todo mundo usava remédio de erva medicinal. Meu avô era raizeiro então fazia muito remédio. O pessoal adoecia e procurava a casa dele em vez de procurar médico. E hoje isso está acabando.”

 

Agência Brasil

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