“A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais”, discursava, seguido de palmas alvoroçadas, o deputado Ulysses Guimarães. O parlamentar naquela ocasião presidente da Assembleia Nacional Constituinte, foi quem declarou promulgada a atual Constituição Federal brasileira.
Há exatos 30 anos, Ulysses apanhava um exemplar e o erguia para uma foto que marcaria esse momento histórico de redemocratização após 21 anos de ditadura militar. Hoje, três décadas depois, e as vésperas de eleições gerais, ON relembra o contexto histórico e a gama de direitos obtidos pela sociedade com a nova Carta Magna. Com especialistas da área do Direito, aborda fragilidades e extensão da Constituição Federal. Por fim, mesclando passado e presente, o cenário político e as suas implicações à constituição é analisado.
O anseio de uma democracia
Na segunda metade dos anos 80, extirpar o autoritarismo dos 21 anos de ditadura militar era o anseio da sociedade brasileira. “Em 1984, o movimento Diretas Já clamava pela possibilidade de o voto ser direto, ou seja, de a população escolher o Presidente da República. Essa onda de democratização atingiu o Congresso Nacional, foi estabelecida a Assembleia Nacional Constituinte e o povo passou a ter o poder de decisão”, sintetiza a professora da UPF, mestre em Direito, Edimara Sachet Risso.
A criação da Assembleia Constituinte foi um dos passos que culminou, em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da atual Constituição. O trabalho iniciou em 1985 e durou 20 meses. Participaram 559 parlamentares (72 senadores e 487 deputados federais). Além disso, o processo de construção da constituição teve forte contribuição popular. Durante cinco meses, cidadãos e entidades representativas encaminharam suas sugestões. Cinco milhões de formulários foram distribuídos nas agências dos Correios. Foram coletadas 72,7 mil sugestões da população de todo o país, além de outras 12 mil sugestões dos constituintes e de entidades representativas.
O resultado desse trabalho coletivo foi a contemplação de direitos fundamentais, liberdades públicas (de expressão, imprensa, manifestação, locomoção), igualdade de gênero, criminalização do racismo, proibição da tortura, entre outros. Pelo menos no papel. Já que alguns desses itens seriam (e ainda são nos dias atuais) submetidos a questionamentos morais. “As eleições voltaram a ser diretas e universais, sem distinção de classe ou gênero, obrigatórias para os maiores de 18 anos. Isso foi possível porque a Constituinte (conjunto de 559 parlamentares que foram eleitos para elaborar a Constituição) era formada por partidos de tendência conservadora (o que se chama de “centrão”), mas permitiu a participação de progressistas”, analisa Edimara.
Em termos de direitos sociais, o documento assegurou desde o atendimento universal e gratuito do Sistema Único de Saúde (SUS), acesso à educação, moradia, proteção à maternidade e à infância até a garantia de direitos trabalhistas e previdenciários. A doutora em Direito, professora da Imed, Tassia Gervasoni, destaca que a missão era alcançar um quadro de igualdade social que acabou e impulsionar diversas políticas públicas que acabaram por promover melhorias na qualidade de vida dos brasileiros. “A Constituição inaugura uma era em que se passa a assegurar e priorizar a liberdade como regra, em suas mais variadas formas de manifestação”, observa.
Passado todo processo de redação do novo documento, a sessão solene foi marcada para 5 de outubro. Naquele dia o país viveu uma situação inusitada: o Estado e a sociedade foram regidos por duas constituições. “O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra”, proclamou Ulysses Guimarães. Estavam abertas as portas da democracia outra vez. A Constituição Federal de 1988 foi a sétima na história do Brasil.
Fragilidades e revisão
O que naquele momento representou um avanço em termos de democracia, hoje já é muito mais passível de críticas acerca de suas fragilidades e necessidades de revisão. Em partes porque a constituição é extensa e prolixa, mas também em função da sociedade ter se modificando ao longo desses 30 anos, segundo Edimara. “Como todo corpo jurídico, a Constituição é “viva”, ou seja, deve ser interpretada e modificada. Os valores sociais desde 1988 foram modificados. A ideia de cidadania já não é a mesma. Isso faz com que os deveres jurídicos precisem ser revistos de tempos em tempos. O texto originário refletia a experiência de seu tempo, do pós-ditadura. As experiências se renovam e, tirando alguns pontos que não podem ser modificados – as chamadas cláusulas pétreas, que mantém a garantia de um Estado democrático, direitos fundamentais, forma de estado e separação dos poderes – toda a Constituição pode sim ser objeto de emendas”, analisa.
Além da revisão das emendas, outro aspecto abordado por especialistas do Direito são os mais de 100 dispositivos da Constituição Federal que não possuem regulamentação, ou seja, não têm plena validade. A professora cita como exemplo a situação do Imposto sobre Grandes Fortunas, que está previsto no art. 153, inciso VII, mas que na prática não é cobrado.
Os motivos para a não regulamentação são basicamente a falta de andamento das pautas e o jogo de interesses que de pessoas e empresas que estão por trás (financiam) os parlamentares. “Quase metade do texto constitucional ainda continua sem previsão de concretização por falta de atividade legislativa. O Congresso Nacional anda as voltas com questões que dizem respeito a interesses que não se pode dizer que sejam de interesse geral da população”, completa Edimara. Para saber se o dispositivo depende de regulamentação, a professora da UPF indica observar as expressões “na forma da lei” ou “nos termos da lei”. Elas significam que há necessidade de complementação do texto para que a legislação seja executada e garantida na prática.
A necessidade de regulamentação acontece justamente porque essas normas constitucionais são de eficácia limitada, conforme Tassia. O que necessariamente depende de complementação. Para a doutora em Direito, a Constituição é um projeto, cuja realização de previsões precisa ser incansávelmente buscada. “São relativamente comuns as críticas à chamada baixa efetividade da Constituição, pois embora tenhamos avançado ao longo desses 30 anos, nossos progressos ocorreram de modo mais lento que outros países em situação semelhante ou mesmo mais atrasados que o Brasil em termos de desenvolvimento e acredito que isso seja uma fragilidade. Outro aspecto que ‘fragiliza’ a Constituição é que, para além da mudança de texto constitucional que ocorreu em 1998, resquícios autoritários permaneceram na estrutura institucional e política do país, que não passaram por substanciais reformas, de modo que algumas revisões amplas ainda precisam ocorrer”, pontua.
Nova constituição a caminho?
As fragilidades e necessidade constante de revisão não significam, porém, que a sociedade e o Estado precisem de uma nova Constituição. As professoras concordam que esta é uma situação deliciada e que preocupa. Tassia argumenta que há uma necessidade de assegurar a estabilidade do Estado Democrático de Direito. Para ela a ideia de uma constituição elaborada por “notáveis” é uma contradição a tudo que se lutou nos últimos 30 anos. “É uma ‘Constituição sem povo’ e, portanto, carente de legitimidade democrática. Aliás, o próprio discurso da necessidade de uma nova Constituição é falacioso, pois não contribuiu em nada para a estabilização democrática. Não precisamos de uma nova Constituição e sim de instituições e pessoas comprometidas com o projeto iniciado em 1988”, enfatiza.
“Sobre as manifestações que clamam por intervenção militar, são uma contradição em termos. É triste ver desprezada toda a luta, todo o sangue derramado e todas as vidas perdidas ao longo de séculos para que pudéssemos viver em uma democracia, com liberdade assegurada e com limites claros ao exercício do poder para conter o arbítrio e o autoritarismo. É a prova de que falhamos enquanto sociedade e de que precisamos urgentemente reverter esse quadro de ignorância”, pontua Tassia.
Ao debater o tema, Edimara alerta que há uma diferença de conceitos que precisa ser esclarecida entre intervenção militar e golpe militar. A primeira é o que acontece no Estado do Rio de Janeiro, desde fevereiro, de acordo com exemplo citado pela professora. O objetivo nesse caso é restabelecer a ordem pública por meio da substituição da estrutura de segurança pública pela presença de tropas do Exército.
Diante deste cenário, a doutora em direito reforça que a luta pela liberdade e pela democracia devem ser permanentes. “As ameaças vêm do ódio e do conservadorismo que tomam os espaços sociais, mas também de instituições políticas e jurídicas que se desviam de suas missões de primar, acima de tudo, pela Constituição. Precisamos nos manter alertas, sim, e sempre dispostos a continuar a luta pelas conquistas alcançadas”, acrescenta a professora da Imed.
Sessão solene e dia chuvoso em Brasília
O dia 5 de outubro amanheceu chuvoso depois de quatro meses de estiagem na capital do país. A chuva atrapalhou as celebrações preparadas para comemorar a promulgação e acabou desestimulando a participação popular nos eventos. O culto ecumênico concelebrado pelo cardeal arcebispo de Brasília na época, dom José Freire Falcão e pelo pastor Geziel Gomes, da Assembleia de Deus, marcado para as 9h da manhã, ocorreu no Salão Negro do Congresso e não no gramado da Esplanada dos Ministérios, como estava previsto.
À tarde, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, o da República, José Sarney, e o do Supremo Tribunal Federal (STF), Rafael Mayer, encontraram-se na rampa do Congresso e passaram em revista as tropas, sendo saudados por uma salva de tiros de canhão.
A sessão de promulgação começou pouco depois das 15h30, no Plenário da Câmara dos Deputados - a essa altura, lotado. Estavam presentes os constituintes, parlamentares estrangeiros, embaixadores, integrantes do governo, militares, representantes de instituições religiosas e outros convidados. Logo depois da execução do Hino Nacional, Ulysses assinou os exemplares originais da Constituição, usando caneta que lhe havia sido presenteada por funcionários da Câmara em 1987.
Em seguida, Ulysses levantou-se de sua cadeira e ergueu um exemplar. “Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra”. Todo o Plenário aplaudiu. Eram 15h50 - a partir desse momento, passava a valer a nova Constituição do Brasil. Uma janela de garantia de direitos se abria nesse momento.
Depois disso todos os constituintes - que agora passavam a exercer apenas as funções de congressistas -, além do presidente da República e do STF, juraram "manter, defender, cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil".
A sessão foi encerrada com o discurso do deputado Ulysses Guimarães, que se tornou um dos principais símbolos da Constituinte, sempre defendendo seus trabalhos contra os críticos e procurando contornar os impasses surgidos. Em seu discurso, Ulysses sintetizou aquele que, a seu ver, era a principal contribuição do novo texto constitucional: “hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa”, disse.