Depoimento de quem viu de perto a tragédia em MG

Advogado e membro da Mesa Diretora do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Leandro Scalabrin, fala sobre as violações de direitos e atendimentos aos atingidos

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Parque das Cachoeiras e Córrego da Mina do Feijão foram duas das comunidades atingidas visitadas por Leandro ScalabrinParque das Cachoeiras e Córrego da Mina do Feijão foram duas das comunidades atingidas visitadas por Leandro Scalabrin
Parque das Cachoeiras e Córrego da Mina do Feijão foram duas das comunidades atingidas visitadas por Leandro Scalabrin
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“A impressão que dava era de que eu estava em um território ocupado em uma zona de guerra”. O relato é do advogado e membro da Mesa Diretora do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Leandro Scalabrin, que esteve em Brumadinho durante a semana. Após cumprir agendas em Brasília, Belo Horizonte e em comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de rejeito da Mina Córrego do Feijão, o ativista contou à reportagem de O Nacional como foram os dias na capital Federal e em Minas Gerais, quais foram as principais demandas dos atingidos e impressões sobre o que afirma ser um crime ambiental.

 

Scalabrin retornou para Passo Fundo ao meio dia de sexta-feira (01). O trabalho agora consiste em redigir o relatório da Missão Emergencial que será discutido e aprovado durante reunião plenária do CNDH nos dias 6 e 7 de fevereiro, em Brasília. O documento tem por objetivo apontar as demandas e repassá-las às instituições responsáveis para que tomem as providências. “Os direitos humanos estavam em Brumadinho. Os direitos humanos são os direitos das pessoas. É o direito ao meio ambiente, direito à moradia, direito à reparação, o direito de ir e vir, o direito à informação. Esses direitos são os direitos humanos que estão lá fortalecendo aquelas pessoas”, ressalta.

 

Como membro do Conselho, Scalabrin atendeu demandas relacionadas à necessidade de cadastramento emergencial das famílias para atendimento assistencial, dificuldade de locomoção, já que a lama invadiu uma estrada que ligava Parque da Cachoeira ao Córrego do Feijão, além de muitas reclamações relacionadas à moradia. “Há muitas pessoas desabrigadas e também muitas pessoas que não querem permanecer lá porque estão traumatizadas”, pontuou o advogado. Relatou ainda que as informações e a ajuda assistencial chegaram tardiamente, de modo que havia comunidades consumindo água de poço com dúvidas sobre possível contaminação com o minério de ferro.

 

Questão dos desaparecidos

Segundo o advogado, a questão mais desumana no momento é a dos desaparecidos. Até à tarde de sexta-feira (01), eram 110 mortos e 249 desaparecidos, conforme dados oficiais. “Lá tem uma comoção muito grande em relação aos números. Não se acreditam que são 200. Acredita-se que são 600 mil desaparecidos. De tal maneira que com o Ministério Público Federal está disponibilizando um mecanismo de coleta de dados alternativos para verificar se os números estão batendo. Não dá para saber se é o trauma das pessoas ou se de fato existe mais do que o número divulgado”. 

 

Nesta segunda-feira (04) o Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais e a Defesa Civil do estado atualizaram para 134 o número de mortos, desse total, 120 já tiveram as identidades confirmadas pelas autoridades. Além disso, 199 pessoas ainda permanecem desaparecidas. Ao todo, 394 foram localizadas.

 

Falta de túmulos em cemitério

Na quarta à tarde, o advogado presenciou o primeiro sepultamento na comunidade do Córrego da Mina do Feijão. Não havia espaço físico para os corpos das vítimas. “Ao mesmo tempo em que o sepultamento estava sendo realizado, havia pessoas trabalhando na ampliação do local, que era uma área de lavoura. Isso gerou uma revolta. A indignação das pessoas, nas palavras deles,era por‘enterrar nossos mortos no pasto e não de forma digna’”, conta.

 

A situação ficou mais delicada ainda quando uma certidão de óbito começou a circular durante o sepultamento. Como local do falecimento constava: evento de Brumadinho. “Quando o pessoal viu, ficou enfurecido. Como assim evento? Era uma festa? Que evento era esse? Por que evento? Nem em Mariana foi colocado assim. Além da dor da tragédia, da perda, a dor de chamar aquilo de evento, que no senso comum das pessoas está atrelada à outra ideia. É uma violação da dignidade da pessoa humana”, enfatiza o advogado.

 

Diário

A agenda de Scalabrin começou na quinta-feira que antecedeu a tragédia, no dia 24 de janeiro, em Brasília, ocasião em que membros da Mesa Diretora do CNDH se reuniram com a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Durante a reunião, foi apresentada uma série de preocupações do Conselho sobre ações e declarações do Governo Federal, como a suspensão da demarcação de terras indígenas, ataques contra população LGBT, entre outras pautas.  

 

No dia da tragédia, o advogado já havia retornado a Passo Fundo. Nos primeiros dias após o rompimento da barragem, Scalabrin estava envolvido com os encaminhamentos da audiência pública sobre a situação dos moradores da Beira-trilho. No sábado, foi contatado por membros do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) de Minas Gerais, para auxiliara pensar em formas de reparação às comunidades.

 

Saiu de Passo Fundo no domingo de tarde, no primeiro voo que conseguiu. Ficou em Belo Horizonte de domingo de noite até a manhã de segunda. Chegou junto com o exercito israelense no aeroporto de Confins e também em Brumadinho.

 

Na segunda, a primeira ação foi participar de uma reunião do Ministério Público Estadual que discutiu formas de organizar os cadastros emergenciais e como situações emergenciais de moradia, alimentação e outras demandas seriam resolvidas. No primeiro dia no local da tragédia, recebeu uma notificação de que havia uma família que estava em uma pousada próxima ao local do rompimento da barragem e que ninguémconseguia contato com eles. Essa família não constava na lista oficial de desaparecidos.

 

Ainda na segunda foi até a comunidade de Parque das Cachoeiras. No local presenciou a demora assistencial, já que a montagem de estruturas para atendimento das famílias e reuniões estava sendo realizada no terceiro dia após a tragédia. Voltou a Belo Horizonte na terça-feira, dia 26 de janeiro. Em discussão com outros colegas conselheiros, foi proposto que se fizesse uma Missão Emergencial como CNDH. “Até aí eu estava atuando pelas famílias, pelas entidades. A partir desse momento foi aprovado uma Missão Emergencial, que foi efetuada na quarta e na quinta-feira”, relembra. Pela Missão Emergencial, os membros realizaram duas audiências com os atingidos para ouvir as necessidades, na quarta-feira.

 

Na quinta pela manhã, o advogado participou de uma reunião com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e representantes do MAB para discutir os impactos do rompimento da barragem. Vítimas dos desastres deram depoimentos e falaram sobre as falhas do processo de reparação instalado em Mariana.

 

Os ativistas pediram apoio da procuradora em projetos de lei que dispõem sobre a situação das barragens e que estão parados na Assembleia Legislativa de MG porque as empresas têm barrado, além do compromisso de que seria designada uma força-tarefa do Ministério Público Federal (MPF).Ainda na quinta, Scalabrin e integrantes do MAB se reuniram com a bancada mineira no Congresso Federal, que está com uma proposta de CPI da Mineração. “Fomos lá para saber qual é a proposta e os deputados fizeram um pedido para que os atingidos apoiem a instalação desta comissão”.

 

Chegou a Passo Fundo, perto do meio dia de sexta, 1º de fevereiro. Durante a semana, mudou completamente a rotina e alega que “a ficha ainda não caiu” sobre o que viu e ouviu lá. “Esses dias a gente não dorme de noite. Acorda cinco da manha e para meia noite.Não almoça, não janta. O tempo todo ou em reunião ou a campo, em contato com órgãos, entidades, familiares. A gente não para”, resume.

 

Crime que poderia ser evitado

Fazendo um paralelo com o desastre de Mariana, que Scalabrin também acompanhou, destaca o impacto das perdas humanas. “Se pensarmos em 360 pessoas, pelo número oficial, ou mais do que isso conforme o sentimento e a fala comunidade. São 360 pessoas mortas e mortas em um crime ambiental. Há pessoas detidas temporariamente pelo Ministério Público e pela Justiça mineira. Então foi um crime e que segundo a decisão que determinou a prisão isso poderia ter sido evitado. Isso é a nossa indignação, de que se isso não poderia ser evitado, ou, se não pudesse ser evitado, poderia ser minimizado”, revolta-se.

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