Comemorar uma ditadura militar em um país democrático é uma contradição absoluta. O apontamento é do doutor em História e professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Gérson Fraga, em relação a medida do presidente Jair Bolsonaro, que determinou que os quartéis militares celebrassem o 31 de março de 1964. A data é lembrada como o dia em que um golpe tirou João Goulart da presidência. A partir da decisão do governo, a discussão sobre o período conturbado e sensível na história do Brasil e a disputa de narrativas sobre os fatos que se sucederam à época emergem.
Para ele, antes de discutir as implicações de promover atividades em alusão à tomada de poder pelos militares, é preciso ter em mente que a democracia brasileira é construída sobre uma "velha tradição de golpes e desmandos políticos, o que se reflete em uma constante relativização dos valores democráticos". Esse "espectro" da democracia paira sobre a história e sobre o modo ao qual parte da sociedade brasileira pratica e compreende a política. "Em uma sociedade herdeira da escravidão, onde a diferenciação social é historicamente acompanhada de privilégios, a prática política é voltada para a conservação destes privilégios, que tomam o público como privado e excluem a maior parte da população daquilo que o Estado deveria fornecer em termos de direitos básicos. Em outras palavras, nosso Estado é, historicamente, voltado para atender as demandas de uma clientela diminuta, porém poderosa", contextualiza.
Esse histórico de dominação e necessidade de manutenção dos privilégios é importante para compreender os argumentos que foram fundamentais para a concretização do 31 de março: "salvar o Brasil do comunismo", conforme o professor. "A falácia é, neste caso, dupla. Em primeiro lugar, porque Jango nunca teve qualquer ligação com qualquer movimento comunista que fosse. Jango era um trabalhista propondo reformas de base, entre elas a reforma agrária que, diga-se de passagem, é essencial para o aprofundamento do próprio capitalismo. Mas, no contexto da histeria anticomunista da Guerra Fria, utilizou-se tal argumento, muito conveniente àqueles que viam seus privilégios em risco naquele momento. A duplicidade da falácia se completa no momento em que o mesmo argumento é esgrimido hoje, fora de seu contexto histórico e completamente esvaziado de qualquer racionalidade", destaca.
O que se comemora?
Fraga questiona os aspectos que realmente estão sendo celebrados. "Temos que ver, com clareza e honestidade, o que significou entre nós o Golpe Militar de 1964: arbitrariedade, censura, suspensão das garantias constitucionais, prisões, torturas, desaparecimentos, execuções", responde. Diante destes atributos, o significado de celebrar a ditadura é, para Fraga, o de "comemorar uma triste tradição histórica entre nós, de lançar mão do autoritarismo como instrumento de manutenção de uma ordem socioeconômica arcaica, nem que para isso seja necessário apelar para o Terror de Estado".
Recontar a história
Em relatório entregue pela Comissão Nacional da Verdade, em 2014, foram listadas 434 pessoas mortas ou desaparecidas durante e por conta do regime militar. A comissão não trouxe dados de torturados. Outras iniciativas trazem números que variam entre 1,8 e 20 mil pessoas. O que também é difícil de mensurar é a dor de sobreviventes e familiares de vítimas do período. Comemorara data que marca o início da ditadura é uma atrocidade e uma falta de respeito com essas pessoas, conforme o professor.
O desrespeito não é apenas em relação ao sofrimento, mas à memória dessas pessoas. Sobretudo porque a sociedade é constituída também por um constante movimento de disputa de narrativas. O professor cita que os tempos de "fake news" que são disseminadas em redes sociais. "É preciso que estejamos atentos para o fato de que as narrativas hoje não mais se constroem exclusivamente sobre o conhecimento duramente adquirido, obtido através da pesquisa e do estudo. Hoje, um professor em sala de aula precisa constantemente opor a versão histórica aos memes, notinhas de facebook e outras criações de tal natureza que muitas vezes apenas celebram o caráter violento e autoritário de nossa sociedade", atenta.
Essa tentativa de recontar a história e de não se atentar para as fontes de onde surgiram as informações, além do carácter autoritário e violento, traz consequências para os movimentos que estão relacionados com o que é lembrado e o que é esquecido pela sociedade. "As narrativas históricas não são apenas narrativas, mas instrumentos ideológicos que podem justificar, inclusive, a dominação do mais forte sobre o mais fraco e, no extremo, a eliminação do opositor. Tal era o discurso histriônico da Guerra Fria, que preconizava o Terror de Estado como instrumento de imposição de uma ordem social construída em benefício de poucos. É este discurso que vemos, "ressuscitado", hoje, quando, em um regime que se pretende democrático, determina-se a celebração de um golpe militar", explica Fraga.