As classes dominantes abandonaram o projeto político de emancipação nacional. Tal tarefa ficou, portanto, a cargo das classes trabalhadoras. Porém, essas classes têm dificuldades de se constituírem como classe autônoma. Tal tese, que gira em torno da discussão de crise geral da independência nacional brasileira, é a estrutura do livro “Revolução e Contra-revolução no Brasil”, do professor e doutor em ciências históricas Mário Maestri.
Se o objetivo do leitor é buscar elementos para compreensão, ou ao menos aproximação, do momento político experimentado pelo Brasil hoje, a obra de Maestri oferece uma reflexão sobre a constituição social desde o século XVI, nos tempos de colonização portuguesa, até o século XXI. “Há uma preocupação geral, consciente ou inconsciente, com os destinos atuais de nossa sociedade. Sente-se que estamos vivendo tempos diferentes, em um sentido profundamente patológico”, argumenta.
A primeira edição do livro se esgotou em poucas semanas. Em decorrência disso, Maestri precisou adiar o lançamento da obra em Passo Fundo, que estava agendado para o dia 12 de abril. Uma nova data será divulgada em breve, assim que a próxima edição estiver pronta. Em entrevista ao O Nacional, o professor falou sobre o livro, ao qual se dedicou nos últimos trinta anos, além do caráter colonial, da dificuldade da classe trabalhadora em conquistar sua autonomia e do abandono do projeto de nação por parte das elites.
ON - Como é estruturado teoricamente o livro "Revolução e Contra-Revolução no Brasil" e qual a principal tese?
Mário Maestri: Tenho trabalhado nesse livro nos últimos trinta anos. Trata-se de acompanhamento da crise geral da formação social brasileira. Trata-se, sobretudo, da discussão da crise geral da independência nacional brasileira e o abandono e negativa, por nossas ditas elites, de dirigirem o processo de emancipação social, mesmo em seu interesse, deixando tal tarefa para as classes realmente produtivas.
A discussão é, portanto, candente. Talvez por isso a grande receptividade da pequena edição do livro, que se esgotou em três semanas. Há uma preocupação geral, consciente ou inconsciente, com os destinos atuais de nossa sociedade. Sente-se que estamos vivendo tempos diferentes, em um sentido profundamente patológico.
No frigir dos ovos, o livro procura apresentar elementos para o entendimento dos terríveis tempos que estamos vivendo que, no meu entender, constituem os momentos de um salto de qualidade na dependência e submissão nacional histórica do Brasil. Acredito que vivemos atualmente momento em que, pela primeira vez em nossa história, as chamadas classes dominantes, que já haviam cedido ao grande capital internacional, sobretudo financeiro, as decisões econômicas centrais, abandonam, de fato, o controle político real da nação.
ON: O livro perpassa desde o período de chegada e dominação dos colonizadores, no século XVI, até os dias atuais. O senhor define períodos específicos ou rupturas na formação social do país? Quais?
Maestri: Em meu trabalho, parto da própria gênese do Brasil, nos tempos da chamada "descoberta", quando vivemos, até 1822, dependência claramente colonial - as decisões políticas e econômicas centrais eram tomadas pela metrópole portuguesa. Os senhores de então dividiam com elas a riqueza produzida por milhões de trabalhadores escravizados explorados até o tutano dos ossos. A independência, em 1822, constituiu a transição para ordem semicolonial, onde as classes dominantes controlavam a política e as decisões econômicas centrais dependiam do grande capital, então inglês. Situação que não se modificou na República Velha, apesar da enorme importância da Revolução Abolicionista, que unificou a classe trabalhadora, antes partida em trabalhadores escravizados e livres. Foi apenas com a Revolução de 1930 que se estabelece um movimento tendencial por maior autonomia nacional, com o padrão nacional-desenvolvimentista burguês, voltado para o mercado interno e apoiado nos capitais nacionais. Ainda que as classes trabalhadoras tenham se fortalecido nesse período, elas jamais conquistaram sua autonomia, sendo mantidas na submissão pela ditadura getulista, pelo populismo, pelo colaboracionismo pecebista. O grande drama de nossa formação social é a dificuldade dos trabalhadores levantarem-se como classe autônoma, dirigente dos destinos da nação.
Após a "redemocratização", em 1945, até a ditadura militar, em 1964, confrontaram-se a proposta de desenvolvimento capitalista autônomo e a submissão ao imperialismo. Em verdade, as classes dominantes nacionais, temendo o fortalecimento das classes produtivas, abraçaram a submissão ao grande capital estadunidense, em 1964.Nesse trabalho, chamo a atenção para fenômeno pouco compreendido, mesmo pela esquerda. Em 1964, o castelismo abocanha o poder e implementa a politica liberal pró-imperialista, lançando o país na recessão e se preparando para as privatizações.
A retomada do movimento social, a oposição, sobretudo, do capital paulista que apoiara o golpe, enseja golpe no golpe, quando os militares nacionais-desenvolvimentistas autoritários deslocam os liberais-castelistas. É a volta de certo modo ao desenvolvimentismo, apoiado, porém nos capitais externos e nas exportações, o que permitiam aumentar o arrocho salarial. Foi os tempos do "Milagre". As empresas estatais foram fortalecidas, novas foram criadas, pretendeu-se explodir a bomba atômica, fortaleceu-se o capital monopólico nacional. Os generais daquele tempo queriam um "Brasil Grande", despertando forte oposição relativa no imperialismo estadunidense. Queriam tudo sobre as costas dos trabalhadores, é claro. A crise de 1975 encareceu os empréstimos e derreou as exportações. O Milagre foi para o buraco.
A "redemocratização" se deu novamente sob a direção das classes dominantes brasileiras. Foi fortemente de mentirinha. A seguir, todos, repito, todos, sem exceção, retomaram o modelo liberal exportador, abandonando para sempre o projeto de desenvolvimento autossustentado, rejeitado totalmente pelas classes empresarias, já sem qualquer sentido de nacionalidade.
O paradoxo, inevitável, do desenvolvimentismo de coturno foi que ele desenvolveu as forças produtivas materiais do país. Ele foi responsável pelo surgimento do PT, naquele então, tendencialmente anticapitalista, e da CUT, em seus momentos iniciais, fortemente classista. Em fins dos anos 1970, começos da década seguinte, foi o único momento em que os trabalhadores ensaiaram política autônoma e proposta para a nação. Muito transitoriamente.
Como disse, nessas décadas que vão de 1985 a 2016, todos os governos, uns mais, outros menos, uns com nenhuma, outros com algumas concessões miseráveis às classes populares, impulsionaram as privatizações, a desindustrialização, a internacionalização da economia nacional, o domínio do capital financeiro sobre nós.
O avanço de quantidade enseja salto de qualidade. Nessas últimas décadas avançou enormemente o caráter semicolonial do Brasil. A tal ponto, e também devido às necessidades do imperialismo estadunidense em seu confronto com a China, que se avançou para situação que defino "colonial globalizada". Ou seja, como propus, em que o domínio político não é mais de nossas ditas elites, mas do grande capital internacional, dominado, em nosso caso, pelo imperialismo estadunidense.
Mensalão, Ficha Limpa e Lava Jato foram o caminho traçado do assalto, em 2016, da institucionalizado, para transformá-la profundamente, como estamos vendo.Termer, Bolsonaro, Morão são agentes descartáveis desse processo, no qual os "novos generais" são os grandes articuladores, sob a hegemonia estadunidense. Torcer o nariz para os árabes, que compram o nosso frango, mostrar a língua para a China, que leva a nossa soja, entregar a base da Alcantara, a Amazônia e vai por aí, é apenas sintomas desse novo país sem interesses nacionais, nem mesmo das elites. A destruição em curso do BB, da CEF, do BNDS vai entregar o agronegócio para o capital financeiro internacional. Se seguirmos por essa estrada, vamos avançar ainda mais, em uma história sem fim, na metamorfose de nosso país em uma enorme plataforma de exportação de produtos manufaturados de baixo qualidade e bens primários, sob a hegemonia do capital financeiro. E isso não é para o futuro. Já é coisa do passado.
Portanto, não temos que temer golpe militar, ao estilo de 1967. O próprio imperialismo jamais permitiria. E não temos mais generais representando o grande capital brasileiro. Os generais de agora só querem uma boquinha e uma casa em Miami.
ON: O senhor falou sobre o abandono do projeto de nação pelas classes dominantes. O cenário curioso que se coloca hoje é que o presidente eleito chegou ao poder justamente com uma retórica nacionalista (com o mote: Brasil acima de tudo). Ele foi apoiado pelas classes dominantes. Qual a sua análise dessas contradições entre os discursos e ações do governo? E como o senhor compreende essa racionalidade que vota por um projeto nacional, mas legitima esse caráter de submissão?
Maestri: Não creio que Bolsonaro tenha chegado ao governo devido à retórica nacionalista. Primeiro, ele chegou ao governo devido ao controle total das eleições, verdadeira farsa. Discuto isso no livro. Em verdade, ele não está perdendo rapidamente apoio. Ele nunca teve o apoio proposto. E ele jamais foi nacionalista. Foi direitista, patrioteiro e entreguista. Bater continência para um ministro estadunidense, deixar que a Colômbia entre na OTAN,Eentregar a EMBRAER, faz os generais nacionalistas-direitistas se voltarem no túmulo.
Nesse movimento que descrevi, fez parte a constituição de um país em que o grande capital tem o controle total de toda, repito, toda a grande imprensa, sem exceção. E, em tudo isso, temos que ajuntar esta questão complexa, como a maré liberal dos anos 1990, a metamorfose social-liberal do PT, da CUT, dos partidos de esquerda.
ON: O senhor também falou a respeito dos trabalhadores. A que se atribui essa falta de autonomia da classe trabalhadora?
Maestri: Procurei abordar, através de nossa histórica, as grandes determinações e influência negativas na imprescindível formação da consciência e organização das classes trabalhadoras e assalariadas, as únicas que podem nos tirar do buraco. Digo, podem. Analiso longamente algumas grandes questões. Primeiro o enorme handicap negativa de um passado escravista que ocupou três quintos de nossa história e pesa ainda sobre nós. A conformação do Brasil com a agregação de regiões sem maiores identidades e unidades, também devido à formação escravista. A industrialização tardia. O domínio estalinista e colaboracionista que pesou sobre o PCB. A grande maré contra-revolucionária dos anos 1990. Uma carga definitivamente pesadíssima.
ON: Quais os principais desafios dessas classes trabalhadoras diante do atual contexto brasileiro?
Creio que literalmente a salvação nacional depende da constituição de um enorme bloco social e político, em defesa dos direitos nacionais, democrático, sociais, sob a direção dos trabalhadores, na perspectiva de reconstrução do país em um sentido essencialmente social. Cada noite, acendo uma vela pro Negrinho do Pastoreio, para que isso ocorra.