Leonardo Andreoli/ON
A polêmica da diferenciação de classe nos atendimentos prestados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) foi tema de audiência pública na manhã de ontem, no plenário da Câmara de Vereadores. Representantes de entidades da cidade e da região mostraram-se contrários à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que permitiu a diferenciação em Giruá, no noroeste do Estado, e que pode abrir jurisprudência para que a medida passe a valer em todo o Rio Grande do Sul. A audiência fez parte de um movimento que acontece em várias cidades gaúchas a fim de dar força à reivindicação apresentada ao vice-presidente do STF na manhã de ontem.
O responsável pela 6ª CRS (Coordenadoria Regional de Saúde), Fabiano Bolner, destaca que outras ações já são movidas pelo Conselho Regional de Medicina em favor da diferenciação. Elas estão no STF e podem atingir todo o Estado. "Isso vem prejudicar o sistema. Ele tem 20 anos de implementação e está buscando regular suas ações e serviços de forma mais efetiva. Isso pode ocasionar muito tumulto no andamento do processo e quebra o princípio da igualdade", enfatiza. Até o momento, a medida é válida apenas em Giruá.
Retrocesso
Permitir a diferenciação seria o equivalente a voltar 20 anos na história do Brasil. Essa é a opinião do diretor do Ceap (Centro de Educação e Assessoramento Popular), Valdevir Both. Para ele, o direito constitucional seria ferido com a diferenciação de classe. "A Constituição diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Quando é um direito é igual para todos. Quando se permite a diferenciação, criam-se duas categorias: um atendimento para quem pode pagar e outro para quem não tem condições. Isso vai legalizar uma prática ilegal, que é atender quem pode pagar a diferença", argumenta. A preocupação do debate está relacionada com o número de ações movidas nesse sentido, uma vez que a tendência do STF é seguir as decisões tomadas anteriormente.
Decisão não técnica
A crítica do promotor Edgar Garcia do Ministério Público do Rio Grande do Sul é relacionada à falta de um parecer técnico para a decisão. "A corte sede às pressões corporativistas, e não técnicas, porque se fossem técnicas, obedeceriam e cumpririam o que está estabelecido no artigo 196 da Constituição Federal, que diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado por meio de todas as esferas de governo. Não podemos permitir isso. Sabemos que cobranças irregulares existem, mas não podemos nos omitir e legalizar isso de forma que se torne a regra", reforça. Ele destaca ainda que, caso essa medida comece a valer, o Ministério Público deverá investigar e abrir um inquérito.
O promotor defende também a necessidade de mais financiamentos, de aperfeiçoamento e de uma melhor gestão do sistema. "O SUS prioriza a canalização dos recursos para os hospitais públicos, e isso não acontece. O único hospital público de Passo Fundo é o que menos recebe recursos. Isso tem de ser revertido na cultura brasileira. Se essa ideia efetivamente acontecer, teremos, forçosamente, que rever as verbas que os hospitais particulares recebem", diz.
Elemento estranho
Para o juiz Luis Christiano Aires, o caso no qual o STF baseou-se para tomar a decisão quanto ao município de Giruá refere-se a uma pessoa que precisava de quarto individual por conta de uma situação específica de saúde. "Já foi uma decisão com problemas, porque introduziu o elemento econômico onde ele não deveria existir. Mas por falha também do próprio sistema, que não criou condições para tratar aquela pessoa de uma maneira desigual dentro da desigualdade da situação", acrescenta.
Ele também defende a necessidade de aperfeiçoamento do sistema. "O SUS não é um sistema pronto, ele está em constante aperfeiçoamento. Nós, como sociedade, temos de estar atentos para exigir mudanças. O risco é surgir situações como a atual, na qual se inseriu um elemento estranho", compara.
Tratamento desigual
A lógica do SUS é de universalidade, integralidade, gratuidade e equidade. Segundo Aires, isso significa tratar desigualmente os desiguais e igualmente os iguais, a validação da medida poderia ocasionar a desestruturação do sistema e o rompimento da lógica segundo a qual ele foi criado. "O argumento artificial do poder aquisitivo vai diferenciar uma pessoa da outra e não a situação de saúde na qual ela se encontra. O rompimento dessa ordem natural do sistema é o fim dele", completa. A fragilidade estaria em o sistema se preocupar com a totalidade e não com as necessidades individuais de cada cidadão. Para o juiz não há problema em o sistema prever tratamento diferenciado conforme a necessidade de cada um.
Audiência
A audiência pública foi promovida pelo Ceap, 6ªCRS, Secretaria de Saúde, Fórum Municipal de Luta pela Saúde e Conselho Municipal de Saúde. O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul e o Sindicato Médico também foram convidados, mas não participaram da reunião.
Artigo 196 da Constituição Federal
"A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."