Natália Fávero/ON
As 130 toneladas de lixo produzidas diariamente em Passo Fundo são levadas para o aterro sanitário municipal e, de lá, parte do volume, ganha outro destino. Em meio a milhares de sacolas de lixo empilhadas, uma associação formada por 60 pessoas protagoniza a transformação da reciclagem. O cheiro desagradável dos resíduos e o visual poluído são inevitáveis aos olhos de quem não está acostumado a frequentar o lugar. O barulho dos caminhões e das máquinas que descarregam o lixo é incessante. As condições do ambiente levam a pensar que as pessoas que trabalham ali só podem reclamar dos inconvenientes e da própria vida. No entanto, o cenário é outro. O espaço que reúne o lixo de toda uma cidade é palco para a felicidade de alguns.
Felicidade personificada por uma jovem que cantarola ao lado de um rapaz e que, ao avistar nossa reportagem, vai logo dizendo: "Tô com vontade de te encher de beijos...". Como uma pessoa pode estar alegre cantando em voz alta e com um sorriso no rosto pisando nessa montanha de lixo? Aos poucos se descobrem as razões de tamanha alegria.
Lucilene Barbosa de Oliveira, de 22 anos, cantava o refrão de uma música chamada "Amanhã sei lá". Ela trocou o antigo serviço para trabalhar no lixão. "Eu sempre canto para passar o tempo. É maravilhoso trabalhar aqui. Eu trabalhava em outro lugar antes, mas não via a hora de vir pra cá. Saio no final do dia com sacolas de roupas e calçados para as crianças. Esses dias eu achei uma sacola de alimentos", revela. Lucilene é apenas uma dos muitos passo-fundenses que retira do lixo o seu sustento.
"O nosso shopping é o lixão"
Ivanir Proença, de 42 anos, é uma senhora miúda e muito falante. Viúva há um ano e meio precisa sustentar os nove filhos. Ela vasculha o lixão em busca de sustento há 18 anos. Antes da criação da associação Recibela, ela catava materiais recicláveis na célula do aterro, juntamente com outras dezenas de pessoas. A casa onde mora é decorada com os pertences encontrados no local. "Já encontrei toalhas de mesa, cortina, copo. Eu lavo tudo e reaproveito. Esses dias achei um celular novinho com um bilhete dizendo: seja muito feliz. Sempre brincamos que o nosso shopping é o lixão", contou Ivanir.
Roupas em bom estado, celulares, máquinas fotográficas, liquidificador, ventilador e outras dezenas de objetos são encontrados diariamente ali. Alimentos, como pacotes de bolachas, de café e enlatados, às vezes, também são reaproveitados. Os associados contam que ao final da tarde saem com as sacolas cheias. Ivanir afirma que adora trabalhar no lixão, mas tem a esperança que os filhos tenham um futuro diferente. "Não sei ler e nem escrever direito. Quero mostrar para os meus filhos que sou honesta e trabalhadora. Não quero que eles trabalhem aqui. Mas, esse lugar faz com que no final da tarde eu tenha dinheiro pra comprar a minha erva-mate e a carne para meus filhos", relatou a integrante da associação.
Uma família trabalhando no lixão
Luiz Gilmar Santos da Rosa é um dos coordenadores do grupo. Além dele, a esposa Solange, de 38 anos, e a filha Daiane, de 18, trabalham no aterro, fazendo a triagem. Toda a renda da família provém do lixão. "É um trabalho digno. Não temos vergonha de estar aqui. Todos que conhecem o nosso trabalho ficam admirados", disse Rosa.
A esposa Solange faz o seguinte relato: "Não é um trabalho fácil. Temos que colocar a mão em tudo. Abrimos sacola por sacola e nos sujamos bastante. Mas, temos que trabalhar", relatou a recicladora.
Os desafios
Com a criação da associação em junho as condições de trabalho melhoraram. Eles utilizam luvas, jalecos e botas adequadas. Entre as 130 toneladas de lixo diárias, o maior desafio é separar os resíduos. "Seria melhor se as pessoas separassem em casa. Tenho orgulho de trabalhar aqui, porque estou ajudando a limpar a cidade", disse dona Ivanir.
Mesmo utilizando as botas e duas meias, um pedaço de vidro cortou o pé de Ivanir nessa semana. "Eles poderiam enrolar os objetos cortantes em jornais ou envolvê-lo de outra forma, contanto que não provocasse perigo. O meu pé está enfaixado, mesmo assim não posso ficar em casa, preciso trabalhar", contou a recicladora. O coordenador do grupo pediu que as pessoas tenham mais conscientização. "Tentamos fazer o melhor possível. A nossa meta inicial era reciclar 30% e já estamos separando 50%. É bom para o nosso bolso e para o meio ambiente", alertou Rosa.
Desde o dia 30 de agosto, a esteira que ajuda da separação dos resíduos está em manutenção. A previsão é para que ela volte a funcionar ainda nesse mês. Durante esse período, os associados farão a triagem na parte inicial do aterro, antes de ser transportado para a célula, o que aumenta a dificuldade, porque é preciso catar e separar os materiais exposto ao tempo.
Embaixo do sol quente, uma jovem de 18 anos disse não se importar de trabalhar, mesmo estando grávida. A barriguinha anuncia a chegada do segundo filho. Com três meses de gravidez, carrega sacolas e caminha entre as sacolas de lixo sem hesitar. "Já estou acostumada. Na outra gravidez eu também trabalhei. Os médicos já falaram para não vir mais trabalhar, mas eu preciso", revelou a jovem.
Quem é a Associação Recibela?
Os associados da Recibela (Recicladores da Associação do Parque Bela Vista) fazem a triagem antes do lixo ser depositado nas células. Das cerca de 130 toneladas produzidas diariamente, o grupo está conseguindo reciclar cerca de 50%. Papéis, alumínio, ferro e plástico são vendidos e o dinheiro é dividido entre os associados. Estão sendo recicladas cerca de 80 toneladas por mês. A renda por integrante fica entre R$ 350,00 e R$ 700,00. Eles dividem a triagem em dois turnos. Metade do grupo trabalha pela manhã e a outra parte à tarde. É uma jornada de seis horas diárias, reciclando o que a população joga fora. Todos os dias um ônibus transporta os integrantes até o lixão.
Confira as legendas das fotos no slide show
01: Lucilene Barbosa de Oliveira é uma das 60 pessoas que integram a associação Recibela
02: Ivanir Proença cata materiais recicláveis há 18 anos no aterro sanitário. O sustento da família provém da venda dos resíduos através da associação e dos pertences encontrados no lixão
03: Ivanir cortou o pé ao pisar em uma sacola com pedaços de vidro. Recicladores pedem que as pessoas separem o lixo em casa para facilitar o trabalho
04: Grávida de três meses, a jovem de 18 anos disse que não pode parar de trabalhar
05:130 toneladas de lixo são depositadas no aterro sanitário diariamente. O grupo Recibela está conseguindo reciclar cerca de 50% dos resíduos