Bruno Todero/ON
É possível uma pessoa permanecer presa por 455 dias, acusada de matar outra usando de meios cruéis, mesmo que a necropsia feita logo após o óbito aponte que a causa da morte foi natural? O caso é emblemático, mas aconteceu em Passo Fundo em 2006, mas só agora veio à tona, depois do julgamento e absolvição do acusado e do desejo do mesmo de ver reparado na Justiça os danos sofridos.
O fato aconteceu na madrugada do dia 27 de dezembro de 2006, em uma casa da rua Serafim Lemos de Mello, no bairro Garden. A dona de casa Márcia Mesquita Gonçalves, então com 42 anos, foi encontrada agonizando na cama onde dormia com o marido, José Carlos Risson Gomes, de 52 anos. Levada ao hospital, Márcia, que era alcoólatra, acabou morrendo.
Desnorteado, Gomes - que também tinha problema com bebidas alcoólicas - saiu de casa, deixando os cinco filhos do casal. A mulher foi velada e enterrada sem que o marido acompanhasse as cerimônias, o que despertou a atenção da investigação policial, conduzida pela 2ª DP. Testemunhas foram ouvidas e relataram constantes atos de violência entre o casal. Uma filha, então com 15 anos, chegou a apontar o pai como autor do crime, afirmando que naquela noite Gomes teria batido na cabeça de Márcia com um pedaço de madeira, onde foram encontrados vestígios de sangue.
O homem acabou preso 10 dias depois, na casa de uma irmã, na vila Hípica, acusado de homicídio duplamente qualificado, já que não teria dado chance de defesa à vítima e usado de meio cruel para matá-la. Contudo, o laudo da necropsia feita no corpo da mulher no Departamento Médico Legal de Passo Fundo teria sido ignorado pela polícia e pelo Judiciário, que homologou a prisão preventiva, mantendo Gomes na cadeia. O laudo dizia que Márcia morreu por insuficiência respiratória aguda, edema pulmonar e edema cerebral, com causa básica ignorada, ou seja, morte natural. Mais tarde, a perícia feita no pedaço de madeira encontrado na casa apontou que o sangue era de rato. Além disso, uma outra filha do casal, também interrogada pela polícia na época, garantia que a mãe tinha problemas de saúde e sofria com seguidas convulsões.
Na época, o réu foi defendido por advogados da Defensoria Pública, que, 20 dias depois da prisão, apresentaram à Justiça um pedido de soltura do acusado, com a alegação de falta de materialidade do delito. O pedido foi negado.
Resultado da história: Gomes ficou recolhido no Presídio Regional de Passo Fundo por exatos 455 dias. Entrou em 8 de janeiro de 2007 e só saiu em 09 de abril de 2008, após a realização de júri popular no Fórum de Passo Fundo. No julgamento, o próprio Ministério Público, representado pelo promotor Marcos Simões Petry, responsável pela acusação, pediu a absolvição do réu, afirmando que a investigação não havia recolhido provas da materialidade do crime. Os jurados o absolveram por unanimidade.
Desejo de reparação
Erro de perícia ou falha na investigação policial e na análise do Judiciário? José Carlos, hoje em liberdade, garante que tanto a polícia quanto a Justiça falharam. Ele confessa que brigava muito com a esposa, com quem vivia há 20 anos, mas que nunca batera na mesma. Buscando reparar o tempo que ficou na cadeia, ingressou com ação indenizatória contra o Estado por danos morais. A causa foi estipulada em R$ 100 mil, mas os prejuízos à vida de José Carlos, segundo ele, são incalculáveis.
A ação indenizatória foi analisada em 1ª instância no Fórum de Passo Fundo, que considerou que a manutenção da prisão de Gomes foi legítima, e que não houve excessos. Os advogados recorreram ao Tribunal de Justiça do RS, pedindo que seja reconhecido o dever do Estado de indenizar a vítima, e ainda aguardam o julgamento do mérito.
A vida fora da cadeia
Acompanhado da irmã, Gomes conversou com a reportagem ON e contou um pouco sobre a dificuldade de sobreviver dentro da casa prisional, a angústia de ficar afastado dos filhos e a nova realidade encontrada do lado de fora da cadeia, quando se deparou com a falta de dinheiro e de um lugar para viver. “Hoje, depois de todo sofrimento e humilhação que passei dentro da cadeia, só quero reconstruir minha vida ao lado dos meus filhos. Rezo para que nenhum deles vá parar na cadeia, porque o que a gente vive lá dentro não é vida”, relata.
Aos 56 anos, Gomes conseguiu trabalho com o patrão que lhe deu emprego por 35 anos antes de ser preso. Mora de favor na casa de uma filha e já está conseguindo a reaproximação com os outros quatro. “Perdi minha casa, meu cavalo, minha ‘gaiota’, extraviaram meus filhos, mas agora estou lutando para recomeçar. Única coisa que peço é Justiça, que paguem pelo que eu sofri lá dentro do Presídio”, diz.