Gerson Lopes/ON
Desvendar o ambiente através da sensibilidade auditiva e tátil é o desafio para 160 deficientes visuais registrado na Associação Passo-fundense de Cegos – APACE -. Mais do que a locomoção, eles buscam autonomia e inclusão social. Desde 2003, a luta por esse objetivo ganhou um aliado importante. Através de um convênio firmado entre a entidade e Prefeitura de Passo Fundo, os associados participam de um curso de orientação e mobilidade coordenado pelo professor de educação física e especialista em atividade física adaptada, Nataniel Borba. Dividido em três módulos, os alunos recebem informações sobre identificação de obstáculos, autoproteção e caminhar independente. Experiente na área, Borba explica que o importante do trabalho é respeitar as individualidades e dificuldades de cada um deles. Em razão disso, trabalha com no máximo sete alunos por semana. “Além de qualificar o ensino, tem a questão da segurança, não podemos sair com grandes turmas para a rua” explica.
Na avaliação do especialista, os denominados cegos congênitos (nascença) têm um desenvolvimento mais rápido, em relação às pessoas que adquiriram a deficiência ao longo da vida. “Eles têm menos medo, então se soltam mais rapidamente. Por outro lado, o outro grupo possui a vantagem de guardar na memória informações sobre uma infinidade de coisas que conheceram antes de perder a visão” comenta.
Sobre a estrutura de acessibilidade na cidade, Borba entende que ainda há um longo caminho pela frente, mas reconhece alguns avanços, como o passe-livre nos ônibus municipais. “Muitos deixavam de participar dos projetos por falta de dinheiro para a passagem. Ficavam isoladas em casa” destaca. Na análise do especialista, o próximo grande desafio dos portadores de deficiência visual será a luta pela inclusão no mercado de trabalho.
A cidade no mapa mental
Quem vê circulando pelas ruas de Passo Fundo, não imagina que, além da bengala, Fábio Flores, portador de deficiência visual, carrega um poderoso mapa mental da cidade. Nele, armazena informações precisas sobre quebra-molas, declives, paradas de ônibus, sons, passeios, placas de sinalização, cruzamentos e diferentes tipos de calçamento. A partir de uma sensibilidade auditiva e tátil apurada, Flores faz de todos esses dados ferramentas indispensáveis de localização.
O desafio de interpretar a cidade de uma maneira muito particular se impôs na juventude. Flores tinha 17 anos, quando as conseqüências da rubéola contraída pela mãe, ainda durante a gravidez, se manifestaram de maneira implacável. Hoje, aos 31 anos, ele fala com orgulho do aprendizado e revela-se um profundo conhecedor de Passo Fundo.
Ao descrever o trajeto de sua residência, no bairro Boqueirão, até a sede da Associação Passo-fundense de Cegos – Apace-, na avenida Brasil, Fábio dá uma verdadeira aula de sensibilidade e senso de localização. Para começar, diferencia o ônibus de uma empresa de outra pelo som do motor. “O ônibus da Codepas tem um exaustor atrás, o ronco é diferente” afirma. Sabe com exatidão quantas curvas existem entre um ponto e outro, além do número de sinaleiras, e paradas de ônibus. O quebra-molas, em frente ao colégio Notre Dame é a senha de que o destino está próximo.
Para distâncias mais longas, como o campus da UPF, o trevo da BR 285 é uma referência importante. “A curva é bem acentuada, depois, o motorista reduz a velocidade para passar em frente ao posto da polícia federal, é o sinal de que estou chegando” revela sorrindo.
Quando está a pé, na área central, a riqueza de detalhes é ainda maior. Uma simples elevação ou defeitos no calçamento, insignificante para a maioria, são suficientes para descrever com precisão o ponto em que se encontra. Enquanto caminha, vai relatando as mudanças provocadas pelas construções na Avenida Brasil. Ao tocar a bengala no chão, comenta sobre o tapete estendido na calçada em frente a uma loja. A posição e intensidade do ar, também é um aliado importante. “Uma entrada de garagem, ou de uma galeria, é facilmente perceptível em função disso. Sinto o deslocamento do ar facilmente” afirma.
Mesmo com toda a prática desenvolvida ao longo dos anos, Fábio destaca que a qualidade da locomoção do deficiente visual sempre vai depender da solidariedade das pessoas. Apesar da audição apurada para captar a movimentação de veículos, o simples ato de atravessar uma rua traz riscos. “Em locais movimentados como as avenidas, eu não atravesso sozinho, prefiro aguardar a ajuda de alguém, o que muitas vezes demora” Ele também condena a atitude de alguns motoristas de ônibus que estacionam os veículos com a porta de desembarque diante de obstáculos como postes e orelhões. “Isso acontece com freqüência, se a pessoa não tiver o cuidado de colocar a bengala na frente, certamente sofrerá algum acidente” lamenta.
Apace investe na inclusão
Criada em 1999, a Associação Passo-fudense de Cegos, atualmente presidida por Luiz do Carmo, realiza um trabalho de inclusão social a partir de uma série de projetos, como leitura dinâmica, natação, equoterapia, entre outros. Recentemente, através da rede Parceria Social, do Governo do Estado, e iniciativa privada, a entidade conseguiu a aprovação de um projeto de R$ 28 mil. Os recursos foram investidos na aquisição de duas impressoras, uma delas em braile, computador e projetor. O pacote incluiu ainda quatro oficinas sobre o funcionamento e gerenciamento da entidade, legislação e acessibilidade. A Apace está localizada em uma das salas no estacionamento da antiga prefeitura municipal, na avenida Brasil, centro.