?EURoeAbri minha casa e meu coração para os senegaleses?EUR?

Quase dois anos após a chegada dos primeiros grupos de africanos na cidade, muitos passo-fundenses já superaram as diferenças e ofereceram um lar para alguns imigrantes. A primeira filha do casal de senegaleses, nascida na semana passada, em Passo Fund

Por
· 6 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Gerson Lopes/ON

Eles vieram a Passo Fundo com a intenção de regularizar a situação do passaporte, na Delegacia da Polícia Federal, e partir para outras regiões em busca do sonho de conseguir trabalho e enviar dinheiro para ajudar familiares no continente africano. Durante algum tempo, andaram em grandes grupos pelas ruas da cidade, com trajes típicos. Por onde passavam, despertavam curiosidade, estranheza e admiração. Passados quase dois anos, muitos daqueles senegaleses receberam o visto e deixaram o Estado, outra parte espalhou-se por diversas  cidades do Norte gaúcho, enquanto um pequeno grupo decidiu ficar e conquistar, não somente a confiança, mas também o coração dos passo-fundenses.
Cativada pelos imigrantes, aos 68 anos, Ana Tereza Machado, ou simplesmente dona Ana, dá uma aula de convívio com as diferenças cultural, racial e religiosa. Moradora da vila Popular, ela e o marido Romeu Machado, abriram as portas da própria casa para abrigar o casal Mamour e Khady. A amizade entre eles iniciou há um ano e meio, quando o rapaz chegou em Passo Fundo, e se hospedou na pensão da família.
Mesmo tendo mudado algumas vezes de endereço durante esse período, o casal de imigrantes nunca perdeu o contato com os antigos amigos. A relação se estreitou ainda mais quando Khady entrou nas últimas semanas de gravidez. Para não deixar ela sozinha, enquanto o marido estava no trabalho, Dona Ana decidiu recebê-los  em sua casa e passou a cuidar deles, com o mesmo carinho e dedicação de uma mãe.
Tanta generosidade só poderia ser recompensada com um presente muito especial. Na terça-feira, a mulher  deixou o Hospital da Cidade trazendo em seus braços, a filha. Uma menina, que pela tradição muçulmana, terá o nome escolhido pela avó paterna no sétimo dia de nascimento. “Minha mãe, que está na África, vai revelar o nome dela na sexta-feira, estou muito feliz” diz  o pai. A celebração do nascimento acontece no domingo com o sacrifício de um cordeiro.

Anjo da guarda
Ao comentar sobre a relação de amizade com os senegaleses, o anjo da guarda dos dois africanos lembra dos antepassados. “Meus parentes vieram de Veneza para ajudar a desbravar um país. Já esses dois encontraram tudo pronto, mas assim como os italianos daquela época, buscam uma vida melhor. Meu marido ficou internado no hospital, e quem passou várias noites com ele foi um africano. Eu não abri somente as portas da minha casa, abri meu coração pra eles. Tem coisas que o dinheiro não compra” diz emocionada.
Enquanto terminava de almoçar (bife e arroz)  preparados por  dona Ana”, Mamour conta ter passado pela Argentina logo após a saída do Senegal, mas revela  ter encontrado em Passo Fundo o que vinha buscando em outros lugares. Após seis meses na cidade, sentiu-se confiante para chamar a esposa da África. Atualmente ele trabalha como marceneiro em uma pequena empresa e tem planos de prosperar na profissão. Entre uma garfada e outra, não poupou elogios ao casal que os recebeu. “  Cara, quem faz isso por alguém se não for uma mãe. Estava saindo para trabalhar e ela preparou essa comida na hora, para eu não ficar sem comer. Ela é minha segunda mãe” revela.
Para  a chegada da nova passo-fundenses, gerada por um casal africano, Ana  improvisou um berço utilizando uma gaveta. Agora, além do neto Antônio José, de sete anos, que já tornou-se companheiro do casal, a avó tem mais uma neta para ajudar a cuidar. “Para mim é como se fosse da família, é uma alegria muito grande poder viver uma experiência destas, na idade em que estou” diz.


À primeira vista
Se a amizade entre o casal de senegaleses e a família Machado foi sendo construída com a convivência diária, para a professora de biodança, Cleusa Maria Taufer, 55 anos, a aproximação com o atual namorado Mamadou Bamba, 36, foi “pura obra do acaso” como gosta de definir. Avessos à badalações, os dois se encontraram em uma casa noturna, trocaram telefones e estão juntos até hoje. Com uma história repetida por muitos conterrâneos, Mamadou saiu do seu país de origem para a Argentina. Após seis meses sem conseguir dinheiro suficiente para mandar para os familiares, foi orientado a mudar-se para o Brasil, mais especificamente a cidade gaúcha de Santa Maria. De lá, resolveu atualizar o visto em Passo Fundo e acabou ficando. Para Cleusa, o convívio com o namorado tem sido uma experiência enriquecedora, tanto do ponto de vista afetivo, como cultural. Morando juntos há dois meses, ela já aprendeu a respeitar  a relação dos africanos com a religião.  “Como ele é muçulmano, faz cinco orações por dia. Pode ligar que ele não atende quando está orando” explica.


Além da devoção, a condição religiosa do imigrante trouxe uma situação nova para a passo-fundense. “Quando nos conhecemos, ele contou que era casado e tinha filhos no Senegal, mas por ser muçulmano, poderia casar-se até quatro vezes” revela.  Por outro lado, a religião dele não permite a relação sem a formalização do casamento, o famoso ‘ficar’ dos jovens. Mesmo morando juntos, Mamadou faz questão de dormir em quarto separado. “Para ele seria melhor casar. Além do aspecto religioso, não teria mais problemas em ficar no Brasil, mas  pelas leis brasileiras, ele não pode se casar novamente” conta.
Além do namorado, Mayana, como é chamada pelos demais imigrantes, abriga em sua casa uma senegalesa de 25 anos. Ela define a relação como desafiadora e, ao mesmo tempo, compensadora. Apesar de segura, não deixa de perceber a presença do pré-conceito em determinados lugares quando circula com o namorado ou a amiga. “Claro que existe, está no olhar das pessoas, mas não ligo para isso, porque eles são seres  de uma grande generosidade, isso é o que importa para mim” conta.   

Pesquisa revela o traço trabalhador dos africanos
A  chegada dos senegaleses em Passo Fundo também chamou a atenção do professor João Carlos Tedesco. Doutor em ciências Sociais e professor do mestrado em história na UPF, desde 2009, juntamente com a professora Denize Grybovski, doutora em Administração, ele iniciou a pesquisa Senegaleses em Passo Fundo, com a intenção de analisar a inserção desses grupos no mundo do trabalho. Segundo ele, nos últimos seis anos, o Brasil vem se tornando uma das principais referências da América Latina, para imigrantes, principalmente da Europa e África,  muito  em razão da legislação branda.
No caso dos senegaleses, São Paulo (capital) e a região Norte do Estado, tornaram-se pontos de referências para os grupos, devido à grande oferta de emprego existentes nesses locais. No norte gaúcho, os africanos estão presentes em  Erechim, Marau, Getúlio Vargas, Nova Araçá e Nova Bassano, atuando  em setores básicos como alimentação (frigoríficos), construção civil, estradas e trabalho informal (ambulantes). Estima-se que pelo menos 200 deles permanecem na região.
Ao longo da pesquisa, foram realizadas seis entrevistas coletivas, com grupos de até 23 imigrantes, além do preenchimento de questionários. Os pesquisadores também ouviram alguns empregadores.  A maioria elogiou a capacidade e disposição do grupo para o trabalho. Apesar do pouco grau de instrução escolar, muitos  foram considerados profissionais com extremo conhecimento e habilidades para determinados serviços. “A grande busca deles é pelo trabalho. O objetivo é juntar o máximo de dinheiro para ajudar parentes na África. São excelentes trabalhadores.  Também tem o aspecto religioso, que é bastante forte. A figura do líder espiritual, exerce uma liderança muito importante” explica Tedesco.
Ao analisar o impacto causado pelos africanos em Passo Fundo, o especialista afirma que o grande desafio da sociedade regional é entender a dinâmica do mundo moderno da migração. “As pessoas buscam espaços onde é possível sobreviver. É importante destacar que os empregadores não deixaram de oferecer emprego para essas pessoas mesmo não tendo muitas informações sobre eles. Também é preciso dizer que há muita exploração do trabalho. Por serem estrangeiros a barreira da língua e a necessidade de sobrevivência deixam eles  mais suscetíveis para uma situação de exploração” explica. Para o professor, a integração social, cultural, e no campo do trabalho, poderia ter outra dimensão, não fosse a característica peculiar  de mobilidade dos africanos. A facilidade com que trocam um lugar pelo outro, ou de um serviço, acaba tornando-se obstáculo para os processos de integração na sociedade. Essa situação os coloca na condição de usuários temporários do espaço, sem garantia alguma de continuidade na carreira.  
        


Gostou? Compartilhe