A morte como companheira de uma vida

Com experiência de cerca de 50 anos, professor conta como foi o início dos estudos de anatomia em Passo Fundo

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Leonardo Andreoli/ON

Lidar com a morte dificilmente é uma situação confortável para as pessoas. Os humanos são os únicos seres vivos com a noção de que um dia a vida acaba. O corpo inanimado, normalmente passa por um ritual de despedida seja o enterro ou a cremação, mais comuns na nossa sociedade. Há, no entanto, pessoas que não possuem parentes ou amigos que possam fazer a despedida e outras que não desejam simplesmente ser enterradas para cumprir o ciclo biológico. Nesses casos o corpo ganha uma nova utilidade após a morte. Ele se transforma em objeto de estudo de aulas de anatomia e ajuda pesquisadores e graduandos em cursos da área da saúde a entenderem como funciona o corpo humano e a aprenderem a como cuidar desta máquina fantástica e cheia de mistérios.

Há 50 anos em Passo Fundo, junto com a criação do Curso de Odontologia, surgiu a necessidade de ter um espaço específico para estudar o corpo humano. Um dos responsáveis pela chegada das primeiras peças anatômicas foi homenageado neste mês pelo Laboratório de Morfologia da UPF. Adelvino Parizzi era aluno da primeira aula de Anatomia e logo após a conclusão da graduação se tornou professor da disciplina por 46 anos. Mesmo depois de tantos anos trabalhando com o corpo humano, ele não conseguiu desvendar todos os mistério e continua fascinado pelos segredos que o corpo humano esconde. A memória sobre as primeiras peças anatômicas que chegaram a cidade é contada com o mesmo entusiasmo com o que olha as peças do acervo que ajudou a construir ao longo dos anos.

Cabeças na mala

As primeiras partes de um corpo humano estudadas em Passo Fundo chegaram na cidade após uma viagem de ônibus de 36 horas. Parizzi lembra bem da participação no Congresso da UNE em 1961 e da visita à Universidade Fluminense.  Com uma carta escrita pelo professor Joaquim Gomes, ministrante da primeira aula de Anatomia, Parizzi e Antônio Pretto chegaram à Universidade Fluminense para um encontro com o professor Maurício Moscovici. “Ele nos ouviu e nos cedeu quatro cabeças. Fomos a uma livraria e compramos papel, plástico e tudo que era possível para embrulhar. Fizemos dois pacotes com duas cabeças cada”, conta.

Como participavam do congresso, as peças ficaram guardadas embaixo da cama até o dia da viagem de volta a Passo Fundo. “A viagem naquela época era de 36 horas. Fomos até Vacaria e depois viemos pra cá. Quando chegamos, precisávamos guardar as cabeças. A universidade tinha comprado uma casa ao lado da antiga Faculdade de Direito e usamos uma banheira para guardá-las em formol”, lembra. No mesmo local funcionava a secretaria do curso e em função do cheiro irritante do formol precisaram trocar de lugar.

Em frente ao RU

O novo lugar utilizado para guardar as cabeças foi um espaço abaixo de uma escadaria que dava acesso a biblioteca. O lugar também não era o mais indicado. Ele ficava em frente a porta que dava acesso ao Restaurante Universitário (RU). O que motivou uma nova mudança. O Laboratório passou ainda por uma sala no porão do Hospital Municipal, depois por um prédio construído nos fundos da casa de saúde. Quando o campus da UPF começou a ser criado o laboratório foi levado ao porão do ICB e há 11 anos está instalado em um prédio próprio no Campus I da UPF. O prédio já foi usado como modelo por outras instituições de ensino do Brasil.

Mais cabeças

Em 1962 Parizzi e outro colega viajaram novamente São Paulo para buscar novas peças. “Fomos à Universidade Fluminense e o professor nos deu mais quatro cabeças. Na volta fomos pegar o ônibus e não tinha mais lugares, só trem. Tivemos que vir de trem. Pegamos as cabeças e as colocamos naquela parte superior para guardar bagagem. Viajamos durante a noite. Eu estava cochilando e de repente acordei com um cheiro de formol dentro do trem. Os pacotes estavam pingando formol. Ficamos desesperados. Pegamos elas levamos para o banheiro do trem e lavamos bem. Depois  enxugamos com jornal, embrulhamos de novo para seguir viagem”, detalha.

Primeiro cadáver preparado

O processo de formolização para conservar o corpo, consiste em injetar formol por uma artéria que passa pela virilha. A primeira experiência em Passo Fundo não teve sucesso. “Não sabíamos distinguir direito uma artéria de uma veia, mas formolizamos e colocamos o cadáver num tanque com formol. No outro dia fomos ver e ele estava flutuando. Amarramos umas pedras e ele afundou. Passou dois dias fomos ver e ele estava flutuando de novo, e colocamos mais peso e ele afundou de novo. Nesse meio tempo começou a criar odores até ficar insuportável, e tivemos que sepultar o corpo”, explica.

Chegada do cadáver

Existe duas maneiras de um cadáver chegar a uma aula de Anatomia. Uma delas são as pessoas que morrem e não possuem amigos ou parentes para reclamar o corpo. Até serem usados para estudo eles permanecem a disposição para o sepultamento. Mesmo depois de estarem na sala de aula, caso um corpo seja reconhecido e reclamado ele é entregue para que seja sepultado. Outra forma de chegada dos cadáveres, são pessoas que manifestam em vida o desejo de serem estudadas. Após uma série de procedimentos legais, os corpos passam a ser estudados por um período e posteriormente são devolvidos a família para o enterro. Mais de 90% dos corpos utilizados na UPF são provenientes de outras cidades.

Quanto tempo?

Se bem cuidado o tempo de utilização de um cadáver é bastante longo. Inclusive, parte de uma das primeiras cabeças estudada em Passo Fundo existe até hoje. Ela foi mumificada e faz parte do acervo do Laboratório de Morfologia. Além disso, peças como ossos são praticamente permanentes. Um corpo mal cuidado corre o risco de enrijecer e se tornar impróprio para o uso científico. “Tratamos com todo o respeito. Guardamos peça por peça dos cadáveres e quando ele é sepultado, sepultamos tudo junto. Todos eles possuem um fichário que acompanha toda a permanência dele aqui”, acrescenta.

Quem desistiu
E teve alunos que chegaram a desistir do curso em função das aulas de anatomia. Mas o professor Parizzi diz que é a minoria. Segundo ele, é mais comum os alunos se apavorarem no início e posteriormente se acostumarem com o contato com os corpos. Depois de preparados cadáveres não oferecem nenhum risco de contaminação para quem os manuseia.

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