Entrevista ?EUR" João Carlos Bona Garcia

?EURoeO médico me examinava e dizia para o torturador, pode bater que o guri agüenta?EUR?

Por
· 5 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Juiz aposentado e atualmente ocupando o cargo de diretor administrativo da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab),o  passo-fundense, João Carlos Bona Garcia, 66 anos, foi o convidado especial para a instalação do Comitê Municipal da Verdade, ocorrido no dia 10 de agosto, na Câmara de Vereadores de Passo Fundo. Uma iniciativa que pretende resgatar  fatos de violação aos direitos humanos ocorridos na cidade e região durante o período da ditadura militar no Brasil.   De militante secundarista na Escola Estadual Nicolau de Araújo Vergueiro (EENAV), a preso  torturado nos porões do Dops de Porto Alegre, Bona foi libertado juntamente com 70 presos políticos na troca pelo embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher,  para viver um exílio de quase 10 anos, em países do Chile, Argentina, Argélia e França. Na passagem por sua terra natal, Bona relembrou alguns fatos deste período e, sobretudo , destacou a importância da abertura dos documentos do período da ditadura para que erros como aqueles não se repitam nunca  mais.
 
 ON – Como o senhor avalia essa movimentação que acontece no Brasil no sentido de passar a limpo um dos períodos mais nebulosos da história recente do país?
Bona Garcia –
Primeiro gostaria de agradecer por esse convite, ainda mais eu que sou passo-fundense. Avalio ser de extrema importância esclarecer um período em que o Estado se serviu de um aparato para prender, seqüestrar, torturar e matar brasileiros que queriam mudar o país.  Esses dados nunca vieram à tona. Eles bateram, disseram o que quiseram de quem era contrário. Praticaram crimes que nunca foram revelados. Quando voltamos, amparados pela anistia, já procuramos documentos para relatar o que houve e nunca foi aberto. Sempre existiu uma lei ou algo do gênero para proibir a abertura.

ON – O senhor chegou a presidir a Comissão da Luta contra a Ditadura  no Estado?
Bona Garcia 
– Sim, fui presidente de uma comissão  que pesquisou esses documentos, até com a ajuda da imprensa. Lembro que enquanto participava de um debate na TV, uma jornalista me entregou um pacote e disse que tinha documentos sigilosos e que queria ver o que eu faria com aquilo. Como eu era juiz e estava na ativa, decidimos convocar a imprensa e divulgar. Ali estava relatada a situação que vivemos, os crimes por eles cometidos e que até hoje estão impunes. Uma semana depois, saiu uma notícia de que estavam queimando documentos em outras partes do país. Existem toneladas de documentos, dos mais variados. O Estado tem de assumir os atos que cometeu. No caso do Herzog, por exemplo, foi torturado e assassinado,  depois aparece enforcado. Agora, recentemente, surgiu a pessoa que montou a foto e disse que tudo aquilo foi uma farça. Até esse momento o exército não admitia, mas é impossível esconder por uma vida toda.

ON -  Trazer esses documentos à tona é fundamental para recuperar parte da história ?
Bona Garcia –
No meu ponto de vista, a verdade e  os documentos têm um valor histórico muito grande. Acho uma grandeza se as instituições que participaram na época, militares ou civis, admitirem o envolvimento. Não tem problema nenhum,  é um gesto de grandeza por parte deles mostrar que num determinado momento cometeram erros. Essa história tem que ser contada desde o primário. As pessoas precisam conhecê-la por uma simples razão, para que nunca mais volte a acontecer, e também,  para entenderem o valor da democracia, da liberdade, de poder agir, pensar e participar. Isso é o fundamental para mim. Trazer elementos para que a história seja contada de maneira correta.

ON – Algumas publicações têm seguido essa sua linha de pensamento, no sentido de reconhecer os erros. Como é o caso do livro Memórias de uma Guerra Suja, onde o ex-delegado do Dops, Cláudio Guerra, revela a incineração dos corpos de dez desaparecidos políticos no forno de uma usina de açúcar que pertencia à família de um ex-governador do Rio?
Bona Garcia –
As revelações feitas por ele me chocaram muito, porque uma das pessoas incineradas na usina esteve presa comigo. Era o João Batista Rita. Estivemos juntos no Chile e na Argentina. Eu sabia que ele havia sido seqüestrado, assim como tantos outros. Também tentaram me seqüestrar em Buenos Aires. Foi algo muito doído saber do fim dele.
 
ON – Que tipo de tortura física o senhor sofreu no Dops de Porto Alegre?
Bona Garcia – 
Das mais variadas. Socos, chutes, pancadas, queimada com cigarro. Uma tortura que apavora e abala muito foi o choque elétrico. Fui muito torturado, inclusive, o torturador, que era major do exército, ficava junto com um médico para não deixar a gente morrer. O médico pegava no meu braço, examinava e dizia “pode bater que o guri agüenta”. Eles prendiam uma pessoa e tinham um prazo de uma semana, no máximo, para extrair, arrancar informação de qualquer maneira, porque depois de cinco dias todo mundo sumia. Tortura é muito complicado, depende da resistência física de cada pessoa.

ON –  O senhor somente conseguiu a liberdade em razão do sequestro do embaixador suíço, como analisa essa questão?
Bona Garcia –
 Os seqüestros eram ações para conseguir dinheiro e arma para o enfrentamento da ditadura. O sequestro mobilizou a opinião pública internacional. O governo do Brasil tinha obrigações com os países de fora em libertar presos. Quando seqüestraram o embaixador americano houve uma aceitação popular muito grande. Até porque muita gente não via com bons olhos o imperialismo americano da época. Aí ocorreram outros seqüestros, até se esgotar no do suíço.

ON – O filme Em teu nome, baseado no livro de sua autoria Verás que um filho teu não foge à luta” traduziu toda essa trajetória?
Bona Garcia –
 Foi o filme gaúcho com maior número de telespectadores, segundo a Ancine, (Agência Nacional do Cinema). Considero uma vitória, por ser um veículo de denuncia daquela momento. Como todo cinema,  tem entretenimento também. Não chega a ser um filme pesado, teria a questão da tortura, mas mostra a vida de um brasileiro que resolveu lutar contra a ditadura, acompanhado da namorada, depois vieram os filhos e a constituição de uma família no exterior, mas sempre pensando em voltar.
 
ON – Depois de toda essa trajetória, o senhor está de volta em Passo Fundo para colaborar nesse resgate?
Bona Garcia –
Passo Fundo tem um fator importante. Foi aqui que comecei a militar na esquerda e a tentar mudar o país. Naquela época, ou se era a favor da ditadura ou contra. Não havia meio termo. A juventude estava no auge. Havia uma revolução no campo das artes, da música. Começamos a militar, como conseqüência, fui expulso do terceiro ano científico do EENAV. Fui preso duas vezes aqui, depois em  Porto Alegre, onde fui submetido a sessões de tortura no Dops, até sair em troca do embaixador suíço. Fiquei fora do país durante 10 anos. Morei no Chile, Argentina, Argélia e França. Minha vida mudou.  Se me perguntarem se estou arrependido, digo que não estou um milímetro. Fizemos o que na época, nós jovens pensávamos. Passo Fundo é um marco para mim.

Gostou? Compartilhe