Há muito tempo o consumo de crack deixou de ser caso de polícia e se transformou em problema social e saúde pública. Junto a isso há também a devastação das famílias, aumento do índice de criminalidade e violência, dentre as consequências mais nítidas. O que, há alguns anos era privilégio das grandes cidades, se espalhou rapidamente e Passo Fundo acompanhou a tendência, atualmente concentrando um alto número de usuários. No município, por exemplo, uma situação que reflete bem este problema foi o aumento, hoje contido, dos roubos aos ônibus urbanos, um tipo de crime que, há cerca de dez anos atrás, praticamente não existia por aqui.
Em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, as prefeituras tomaram medidas drásticas para tentar combater o consumo da droga. Com o uso de força policial quando necessário e a participação de agentes de saúde, o Estado retira das ruas os usuários reunidos nas chamadas “Crackolândias”, locais que concentram grande números de dependentes químicos e os interna compulsoriamente para a desintoxicação.
Apesar de ter sido destaque nas manchetes quando adotada recentemente, não há nenhuma novidade em relação à internação compulsória. Na verdade, desde 2001 há uma lei que prevê a internação compulsória e involuntária de pessoas com transtornos mentais, que vem sendo aplicada em relação aos usuários de drogas, especialmente de crack. A internação do paciente é solicitada, em geral pela família, ao Judiciário, que analisa o caso através de laudos médicos e a situação da pessoa e determina, ou não a internação para desintoxicação. A real mudança é que, desta forma, como as duas maiores cidades do País vêm procedendo, há um acordo entre o Estado e o Judiciário que acaba com a necessidade de decisão judicial para que a pessoa seja levada para tratamento.
Município não deve adotar a mesma medida
A medida chama a atenção a partir do momento em que se questiona a eficácia deste tipo de internação da forma que ela está sendo aplicada nas duas maiores cidades do País e, em um primeiro momento, Passo Fundo não deverá seguir o exemplo. “Não estamos vendo estas pessoas, elas foram retiradas de circulação, mas não estão sendo efetivamente tratadas. Após a desintoxicação esta pessoa tem que ir para outro lugar. Se não prepararmos a sociedade para receber esta pessoa novamente, não adianta tirar das ruas e deixar alguns dias no hospital. Temos uma demanda diária, mas com certeza, algo que não faremos é isto que São Paulo está fazendo”, disse a psicóloga Eliana Bortolon, coordenadora de Promoção à Saúde da Secretaria Municipal da Saúde. Para tentar conter o avanço da epidemia do uso do crack, desde 2008 o município conta com o Centro de Atendimento Psicossocial-Álcool e Drogas (Caps-AD), responsável pela triagem e avaliação dos usuários encaminhados para a desintoxicação.
Segundo a enfermeira Andressa Rebequi, coordenadora do Caps-AD, as internações compulsórias começaram há cerca de dois anos no município e o Caps-AD recebe entre oito a 12 pedidos de avaliação por semana. “O período de espera para a avaliação reduziu bastante de cerca de um mês para um prazo de sete a dez dias”, disse.
O Caps-AD realiza cerca de 1.200 atendimentos por mês sendo que menos de 5% correspondem a medidas compulsórias ou involuntárias. Após a avaliação, o paciente é encaminhado para a internação hospitalar com o objetivo da desintoxicação. Normalmente os pacientes são encaminhados para o Hospital Psiquiátrico Bezerra de Menezes, ao Hospital Municipal e outros hospitais da região.
Porém, em boa parte dos casos, o paciente passa somente pelo processo de desintoxicação e não progride com o tratamento. “Somente a desintoxicação não resolve o problema. A decisão judicial não cabe para a internação em uma comunidade terapêutica, por exemplo ou para atendimento no Caps-AD, porque para isso é necessário que o paciente queira continuar o tratamento. Muitas vezes, após a desintoxicação, o paciente acredita que não precisa mais de acompanhamento. As famílias também não estão preparadas para receber este paciente após a desintoxicação, não participam dos grupos de auxílio disponibilizados. E mesmo quando os pacientes internados compulsoriamente decidem ir para alguma comunidade terapêutica, o tempo de permanência é curto e sempre há oferta de vagas nos locais conveniados com o município”, disse a coordenadora do Caps-AD.
Hospital Municipal tem 12 leitos para desintoxicação
Passo Fundo concentra um alto índice de usuários de crack e conforme dados da Confederação Nacional dos Municípios, a cidade é apontada como uma das que mais sofrem os problemas decorrentes do consumo de crack no Estado do Rio Grande do Sul. O município mantém um convênio com duas comunidades terapêuticas para o tratamento de dependentes químicos. Normalmente, tanto nos casos de internação voluntária quanto compulsória, o paciente é internado para a desintoxicação, por um período médio que varia de 14 a 30 dias.
O Hospital Municipal possui uma ala própria para a desintoxicação de adolescentes. Os maiores de idade são internados nos quartos comuns. No local há uma equipe multidisciplinar responsável pelo atendimento dos pacientes, composta por enfermeira, assistente social, nutricionista, psicólogo, médico psiquiatra e técnicos de enfermagem.
Para o médico psiquiatra Alexandre Benincá, que atua no hospital, a internação compulsória, na maioria dos casos é uma medida eficaz. “Além de eficaz é necessária. Estas internações acontecem em casos que o paciente apresenta riscos, como agressividade intensa, suicídio, homicídio e recusa de tratamento. O objetivo principal é de que o fluxograma funcione para que possamos acompanhar este paciente. São muito comuns os casos de pacientes que apresentam tanto a dependência química quanto transtorno de humor, nestes casos, o tratamento da dependência é realizado primeiro”, explicou.
Até a última quinta-feira (28), havia três jovens internados na ala reservada aos menores de idade para desintoxicação, dois deles voluntariamente.
Famílias buscam auxílio da Defensoria Pública
A Defensoria Pública recebe diariamente vários pedidos de internação compulsória e involuntária, especialmente de familiares de dependentes químicos. Para solicitar a internação via judicial, é necessário que a pessoa vá até a Defensoria Pública e apresente os documentos e um atestado médico comprovando a necessidade de tratamento do usuário, mesmo contra a sua vontade. “Na maior parte das vezes o dependente não quer a internação. Antes de ser determinada, em 99% dos casos o juiz requere uma avaliação do Caps-AD, e a partir disto se verifica a necessidade ou não de internação. Sendo um caso de internação, uma vaga é solicitada à 6ª Coordenadoria Regional da Saúde, e, havendo necessidade há uma ambulância que pode buscar a pessoa”, disse a defensora pública Vivian Rigo.
Também conforme a defensora pública há sempre mais de um pedido de internação compulsória sendo ajuizado em Passo Fundo diariamente. “Todos os dias temos ajuizado ações de internação. Há leitos disponíveis, mas a demanda é muito grande, não é uma coisa de uma hora para outra há um tempo de espera, mas não falta atendimento”, explicou.
A partir de março deste ano, a Defensoria Pública passará a atender com agendamento prévio de horários, o que reduzirá as filas no atendimento, porém os casos de extrema urgência, no que se enquadram geralmente os pedidos de internações compulsórias ou involuntárias, serão atendidos no mesmo dia.
Relutância dos dependentes leva os familiares a solicitarem a internação
Uma mulher de 31 anos, mãe de cinco filhos e usuária de crack se nega a aceitar a internação para fazer o tratamento contra a dependência química. Ela retornou à casa da família na Vila Operária na última semana após ficar quase um mês sem aparecer em casa. “Ela chegou em casa, toda suja, toda rasgada, precisando de ajuda. Com uma parada assim, se desintoxicando, ela poderia pensar melhor na vida e buscar coisas novas. O primeiro passo seria a internação”, disse a mãe que tenta convencer a filha a buscar a internação para o tratamento. Este é um caso típico em que a internação involuntária pode ser requerida.
Até o momento, a mãe ainda não solicitou a internação compulsória da filha, que pretende voltar a trabalhar para poder recuperar também a guarda de duas filhas, que vivem com o pai. “Meu foco agora é trabalhar e recuperar as minhas filhas. Não preciso de internação”, enfatizou ela que fazia programas para poder sustentar o vício.
Mesmo com a decisão da mulher em buscar um trabalho, a mãe não acredita que ela possa se livrar da dependência química sozinha. “Não adianta ela começar a trabalhar logo e ter uma recaída. No meu ponto de vista, ela precisa de ajuda, sim. Até para provar para ela mesma que ela está disposta a mudar de vida para ter as filhas novamente. Agora que ela tem ficado em casa, ela não está usando, mas quem garante que amanhã ela não volte a usar?”, questionou a mãe. A mulher chegou a ir até o Caps por duas vezes, porém, não deu continuidade ao acompanhamento multidisciplinar que o centro oferece.
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