"Não podemos formar mamíferos de luxo"

Entrevista ?EUR" Julio Alejandro Jelvez

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Aos 16 anos, ele fez parte do grupo de voluntários para o processo de alfabetização nos assentamentos campesinos, liderado pelo pedagogo Paulo Freire, durante os anos de exílio no Chile. Mais tarde, com o golpe em 1973, trocou o campo por um grande centro urbano. Em Buenos Aires, passou a atuar nos movimentos de politização nas vilas, difundindo a experiência adquirida com o mestre. Com a ditadura apertando cada vez mais o cerco, chegou ao Brasil dois anos depois, onde permanece até hoje, radicado em Porto Alegre. Aos 61 anos, o chileno Julio Alejandro Jelvez, mestre em filosofia da educação e doutor em gerontologia, é um dos responsáveis por pensar e ajudar a implantar um novo modelo pedagógico na gestão do governador Tarso Genro para o ensino médio nas escolas estaduais do Rio Grande do Sul. Assinado em 2011, a chamada Proposta Pedagógica para o Ensino Médio Politécnico e Educação Profissional traz, entre outras expectativas, a de tirar o Estado da incômoda liderança do ranking brasileiro de reprovação. Em 2011, o índice de repetentes no ensino secundário público foi de  22,2%, conforme dados do Censo Escolar do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep). 

Durante a programação de abertura do ano letivo,terça-feira passada, Alejandro, acompanhando o secretário estadual de educação, José Clóvis Azevedo, passou por algumas cidades da região, entre elas Passo Fundo, divulgando o projeto. Para reverter o quadro, o governo aposta na substituição de paradigmas, passando de um modelo tradicional a uma formação interdisciplinar, baseado no ensino politécnico, articulado com as diferentes áreas do conhecimento e suas tecnologias. Logo após a palestra de aproximadamente 20 minutos, para um publico reduzido que permaneceu no salão de atos da escola Menino Jesus, até o final da programação, o especialista em educação conversou com o ON, sobre sua trajetória de vida e os desafios no cargo de Assessor Técnico do Departamento Pedagógico.

ON – Como foi a experiência de conviver e participar de um projeto que tinha Paulo Freire como coordenador?

Julio Alejandro Jelvez – Em 1967 eu estudava em escola pública. Nessa época, acontecia no Chile o processo de reforma agrária. Paulo Freire, assim como outros intelectuais, entre eles José Serra e Fernando Henrique Cardoso integravam um grupo de pesquisa e colaboravam com o processo. Paulo Freire passa a questionar se apenas o fato de entregar a terra era suficiente, ou era necessário um processo mais amplo de comunicação e alfabetização dos campesinos, no sentido de compreenderem a transformação de uma história de dependência para a posição de sujeitos. Ele viu que era um processo mais amplo, de tomada de consciência.

ON – A partir desta constatação inicia o trabalho de alfabetização?

Julio Alejandro Jelvez – Para formar os grupos de cultura e alfabetização, a coordenação passava pelas escolas requisitando professores e alunos voluntários. Como eu estava iniciando o ensino médio, aceitei e tive uma formação com ele nesse processo. Trabalhamos na cordilheira, pesquisando a realidade dos assentamentos campesinos. Os trabalhadores passaram a ler e a ter uma tomada de consciência. Pouco antes, Paulo Freire havia escrito a Pedagogia do Oprimido, depois escreveu Extensão ou Comunicação? Ele coloca o aprendizado como um exercício de liberdade, aprender de forma coletiva. Estou marcado em todas as minhas ações por esse procedimento. Foi uma experiência definitiva.

ON – Sua trajetória intelectual é pautada por experiências junto aos movimentos sociais, desde o período no Chile, posteriormente na Argentina e no Brasil?

Julio Alejandro Jelvez – Na Argentina encontrei outra realidade. Não era mais o campo, mas um grande centro urbano. Iniciamos um processo de politização nas chamadas ‘Vilas misérias’. Já no Brasil, estava cursando filosofia na PUC quando fui expulso por fazer parte do movimento estudantil e ter visitado o acampamento na Encruzilhada Natalino (berço do MST no Brasil).

ON – Após uma experiência no governo federal, atuando junto ao Pronasci, o senhor atualmente integra o grupo que ajudou a pensar e implantar a nova proposta pedagógica para o ensino médio nas escolas do Rio Grande do Sul, qual a novidade neste modelo?

Julio Alejandro Jelvez - A ideia central é de dotar a pesquisa como princípio pedagógico. O professor tem que colocar o aluno em situação de construção do conhecimento e não mais ficar dando discurso. Ele não é mais a única fonte de saber. É preciso elaborar pesquisas que tenham a ver com a realidade local, aspecto produtivo, econômico, social e cultural. Aí o aluno vai entender como é sua comunidade, seu contexto.

ON – Como está sendo a aplicação prática da proposta?

Julio Alejandro Jelvez – Cada Coordenadoria Regional de Educação (CRE) tem uma coordenação pedagógica do ensino médio, que por sua vez, se reúne com as coordenações das escolas. O primeiro ponto é que todas as áreas têm que apresentar projetos de pesquisa. São quatro eixos: cultura, ciência, tecnologia e trabalho, enquanto princípio educativo. Isso implica numa formação interdisciplinar. O professor sai do palco para entrar na pesquisa. É o ensino médio politécnico, que não significa formação de mão de obra, (isso quem faz são os cursos profissionalizantes). Todos os saberes e ciência têm que ter conhecimento de como estas realidades estão no mundo do trabalho, conhecer o mundo produtivo e que situações e condições estão aí. Como diz Gramschi, não podemos formar mamíferos de luxo, que não sabem o quanto custa o que exibem e nem o valor da produção e do trabalho.

ON – E como tem sido a recepção da proposta por parte dos professores?

Julio Alejandro Jelvez – O professor está entendendo que não é a única fonte do saber. Que não deve dar a resposta da pergunta ditada, e sim, desafiar o aluno a ser um investigador. Na pergunta é que está o desafio em buscar a resposta, não entregá-la pronta.Não existe nenhum conhecimento definitivo. Temos de formar o espírito científico no sujeito. Um professor que fica
atrelado ao livro de perguntas e respostas deveria se perguntar: com o que está contribuindo para o desenvolvimento da comunidade e do ser humano.

ON - O RS ocupa uma das últimas posições no ranking de reprovações no ensino médio. O senhor acredita que a nova proposta pedagógica pode reverter esse quadro.

Julio Alejandro Jelvez – A metade sul do RS é onde mais se reprova e se exclui alunos. É preciso fazer uma leitura ampla desses dados. Analisar desde o modelo econômico produtivo, passando pelas formações sociais, para compreender as causas do elevado índice de repetência. Naquela região existe uma mentalidade de defesa desse modelo medieval de ensino. Este ano vou atuar nessa região para acompanhar de perto.

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