Da agressão à superação

Passo Fundo tem o segundo maior índice de registro de vítimas de agressões domesticas. São quase três mil por ano. Mas, são poucas as vítimas que superam o trauma

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O fogo consumiu a casa e quase acabou com a vida de uma senhora de 54 anos, que, após ficar viúva e criar os cinco filhos, sozinha, resolveu encontrar outro companheiro para dividir seus dias e ser feliz. Mal sabia ela que o novo companheiro, com qual conviveu quase três anos, tinha outros planos para o futuro do casal: a felicidade cabia a ele, a submissão, a ela. 

Doze anos depois de sofrer uma tentativa de homicídio pelo então cônjuge, dona Natalina Inticher, procura não lembrar como foi difícil passar por tanto sofrimento: da perda da casa conquistada, das sequelas distribuídas pelo corpo, e, mais, do rancor que acumulou. O ex-companheiro de dona Natalina, preso e condenado por dez anos de prisão, já morreu, mas o sofrimento que ela passou durante os anos em que se recuperava não será enterrado. Ela é apenas uma das quase três mil mulheres que aparecem nas estatísticas do município, como sendo o segundo maior em índice de violência contra a mulher do Estado, perdendo, apenas, para Erechim.

Vítimas perdem autonomia e voltam para os agressores
Em dois anos, Passo Fundo acumulou mais de 5.300 ocorrências de violência contra mulher. As estatísticas apontam o município como o mais violento da região e o segundo mais violento do Estado, levando-se em conta o número de registros de ocorrência em relação à população feminina. Em 64 dias, a Delegacia da Mulher acumulou 714 denúncias, sendo 70% violência doméstica – que pressupõe que um homem, cônjuge ou filho agrediu, ameaçou ou injuriou a vítima.

De acordo com a delegada responsável pela Delegacia da Mulher, Claudia Crusius, o número de reincidência é elevado, pois muitas mulheres que denunciam e, até mesmo, pedem medidas protetivas, desistem de levar o caso adiante e retornam a conviver com o companheiro. “Não digo que é raro as mulheres que registram e não olham para trás, mas é mais comum ver vítimas voltarem a viver com seus agressores do que vítimas que seguem em frente”, diz.

Seguir em frente é difícil para as vítimas, pois se sentem parte do agressor. Segundo o psicólogo e coordenador da Escola de Psicologia-IMED, Luiz Ronaldo F. de Oliveira, a mulher passa a viver sob o controle do agressor e pode se isolar, se deprimir e perder o sentido da vida. “O violento não tolera ser contrariado e elege a si próprio, em preferência às outras pessoas, impedindo o outro de ter autonomia”, explica.
Por faltar autonomia, a vítima torna-se dependente, deixa de agir por conta própria e retorna ao convívio com o agressor, onde será, novamente, controlada. Conforme a delegada, existem muitos outros motivos que levam as vítimas a retirar a queixa. “As dependências pesam muito, em especial a econômica. A maioria dos casos são mulheres jovens, com filhos e sem renda financeira individual”, esclarece.
Essas mulheres ainda passam por dependência psicológica – que, apesar das condições financeiras, aguentam ao lado do companheiro devido ao poder persuasivo de proceder à separação – e por influência familiar. “Os pais ou irmãos acabam induzindo a vítima a ficar ao lado do agressor, alegando que ela deve pensar melhor e lembrar dos filhos que tem para criar”, exemplifica.

Para o psicólogo, tal sentimento de posse do homem sobre a mulher possui uma importante raiz sociocultural permeada pela ideologia patriarcal que se caracteriza pela dominação do masculino sob o feminino e que se manifesta em relações de violência e dominação.

A luta permanente
Os casos são diferentes, as superações também. Dona Natalina superou as queimaduras, a dor e a perda da casa, que havia conquistado com esforços próprios. Juscemara de Mattos, 43 anos, superou a mágoa, o desejo da morte e a depressão desenvolvida durante os cinco anos de sofrimento. As vítimas enfrentaram anos de luta física e emocional. Enquanto Juscemara se defendia da violência física e se encorajava, sem apoio, a abandonar o marido, Natalina lutava contra a morte, em uma cama de hospital. Na época, Juscemara tinha 30 anos e era mãe de duas crianças, um menino de 7 – fruto de outro relacionamento – e uma menina de 2 anos, que assistiam aos momentos de tensão e desespero em silêncio, sem poder interferir.

De acordo com Juscemara, foram anos difíceis: “Tive que buscar dentro de mim uma força, determinar que não queria mais aquela situação e tomar uma atitude”, conta. Familiares e amigos procuravam não se envolver, pois acreditavam que em briga de casal ninguém devia opinar. “São poucos os que ajudam nessa hora, eles diziam que nem iam interferir, porque depois eu ia acabar voltando”, relata.
Com esforços internos e muita coragem ela se separou do agressor. Porém, foram mais dois anos morando embaixo do mesmo teto, por não ter para onde ir, tampouco condições de manter um aluguel. “Foi o pior momento, pois eu já havia procurado ajuda de uma psicóloga, já tinha tomado a decisão e tinha que continuar ali, na mesma casa. Ele passou a me agredir mais, tanto que eu não aguentei”, assegura.
A vítima saiu de casa, mesmo sem condições, e passou a pagar aluguel por mais dois anos, enquanto encontrava, ao meio de outras contas, uma maneira de guardar dinheiro para comprar a parte da casa, pertencente ao ex-marido.

Com muita dedicação, a agredida conquistou a sua casa, porém, com uma grande diferença: não temia mais a chegada de ninguém.
Conquistar uma moradia, também foi objetivo de dona Natalina, que morou por cinco anos – depois de se recuperar do coma – com uma de suas filhas, lutando por uma casa nova. “Eu não podia trabalhar, por que estava toda queimada. Não me levantava de pé, não conseguia comer sozinha, devido as queimaduras. Eu era inútil e só pedia a Deus para que eu pudesse, novamente, ser útil”, expõe.

“Prefiro te ver morta do que com outro”

O maior sofrimento de dona Natalina veio depois da separação. “Enquanto nós estávamos juntos, ele só ameaçava dizendo que preferia me matar do que me ver com outro, mas eu não levava ao pé da letra”, esclarece. Quando as brigas começaram, ele cumpriu a promessa que não se concretizou, graças a uma criança que ouviu seus gritos e chamou socorro. Em meio as chamas, e sem enxergar, pois o fogo já havia atingido o seu rosto, ela foi guiada para fora da casa por seus vizinhos e, rapidamente, encaminhada ao hospital.

A vítima teve queimaduras de 3o grau em 75% do corpo e precisou ser transferida para Porto Alegre. Em seguida, retornou para Passo Fundo, onde permaneceu em coma por quase cinco meses. Os cuidados no hospital eram redobrados, pois o ex-companheiro tentara entrar no quarto a fim de concluir o que prometeu. “Fotos dele foram mostradas para os vigias, e sempre tinha alguém me acompanhando, até que ele foi preso”, conta. O ciúmes doentio – que não deixava os netos se aproximarem da avó se ele não estivesse presente – trouxe angústia a Natalina durante os anos seguintes a tragédia, pois a mulher independente, que criou os filhos, conseguiu uma boa moradia e se mantinha com o salário do seu emprego, foi submetida ao auxílio e boa vontade dos familiares, que em momento algum a abandonou.
De acordo com Oliveira, a solução para esse problema não pode se limitar apenas a questão de punir agressores, é necessário um trabalho mais completo. “A questão exige ações que estejam voltadas para a prevenção e, ainda, medidas de apoio que permitam, por um lado, à vítima e à sua família terem assistência social, psicológica e jurídica necessárias à recomposição após a violência sofrida e, por outro, que proporcionem a possibilidade de reabilitação do agressor”, explana.

Conforme a vítima, faltou assistência jurídica, pois não houve indenização, tampouco auxílio para se restabelecer, o que dificultou muito a superação. “Nem gosto de lembrar disso, por que me disseram que eu teria essa ajuda, mas não tive. Se não fossem meus filhos, eu não teria outra casa para morar”, queixa-se.

O rancor por parte dos agressores foram superados por ambas as vítimas. Dona Natalina não teve mais contato, pois quando o acusado saiu da cadeia, logo em seguida morreu. Já Jucemara conseguiu estabelecer uma amizade com o ex-marido, em prol do bem de sua filha, um vínculo eterno.

“Não se ganha uma luta, sem lutar”, ensina Jucemara. Elas lutaram e venceram. Sem rancor, mágoa ou dor, elas levam a vida normalmente e não deixam de apoiar as mulheres que precisam, pois não desejam a ninguém o mesmo sofrimento pelo qual passaram.

Espiritualidade

Deus. Quando mencionam a superação, a luta e a vitória, as vítimas falam em Deus. “Eu dei a volta por cima e busquei Deus para superar”, diz Jucemara, que tirou forças da sua fé para encarar a separação. Já dona Natalina conta que, além de chorar muito, rezou muito e clamou por sua recuperação e volta à sociedade. “Eu acredito na espiritualidade e acredito que minha recuperação foi um milagre. Não fosse Deus ter me ouvido e dado a segunda chance, eu não estava aqui, saudável”, menciona.

Para a psicóloga da Comissão de Direitos Humanos do município, Paulina Cecília Mantovani, a espiritualidade é importante para essas mulheres, pois encontram nela, o conforto que precisam. “As marcas da violência ficam, e elas obtêm na religião, um significado por suas marcas”, informa. Essa espiritualidade traz esperança para as vítimas, que passam a ser impulsionadas por essa “força superior” a trocar a vivência dramática pela luta e, finalmente, conquistar vitória.

Onde encontrar ajuda: ¥ Delegacia da Mulher ¥ Casa de Apoio ¥ Mulheres da Paz ¥ Comissão de Direitos Humanos

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