Natália Mendes é minha aluna e captou com clareza o que tenho tentado transmitir além das técnicas médicas em relação às emergências no trauma. Tenho tentado propor reflexões à vida que se leva e que poderia, talvez, ser levada de outra forma. Aos cinquenta, a gente, de repente, tem vontade de pedir para descer do ônibus. “Pare o mundo que eu quero descer”, já cantava Sílvio Brito em 1972, talvez embalado por cânticos de Niesztche que descreviam a necessidade de não sermos apenas rebanho, ou seja, ir enfileirados, sem perguntas e pausas. A reflexão sobre a vida que é e a que poderia ter sido tira o sono de muitos. Eu, por exemplo, médico, bem casado, orgulhoso de meus filhos, morando na cidade que eu gosto e vivendo entre gente bacana só poderia ser feliz, como sou. Acho que fiz boas escolhas e, no caso de minha mulher, fui bem acolhido por ela. Mas, patologicamente ou não, comecei a ter saudades do que não fui, ou do que deixei de ser.
Mario Quintana tinha saudades das ruas de Porto Alegre por onde nunca andou. Jayme Caetano Braun tinha saudades tipo “mas, hei de encontrar os rastos dos versos que não cantei”. Ao fazermos escolhas, e só é plenamente feliz quem pode dispor da possibilidade de escolher, fechamos outras possibilidades. Ao enveredarmos para um lado, abdicamos de ir para o outro. Fiz muito boas escolhas, mesmo quando me enganei. É da vida se enganar. Tenho orgulho do que escolhi, mesmo que não tenha dado grana. É próprio da gente ter saudade dos bons e imorredouros tempos de adolescência, da escola, da banda, da boate do Juvenil ou Centro Social, da Cacimba ou Urso Branco. De repente, uma saudade de mim veio e bateu e patologicamente senti saudade do Jorge que deixou de ser, do que queria ter sido militar ou engenheiro florestal, do Jorge que ficou morando em Cruz Alta ou Santiago, do Jorge que casou com a primeira, com a segunda ou terceira namorada, do Jorge que queria ter ido embora para o Mato Grosso, Rio de Janeiro ou Moçambique.
Cada um desses Jorges foi viver seu lugar em alguma lacuna de tempo. Penso, muitas vezes, em reuni-los, lá no Boka, lá no Natus – os bares de minhas vidas. Queria deliberar com eles, saber suas histórias e estórias, saber de seus filhos, de seus projetos e realizações, saber dos sonhos que sonhamos juntos, eu e minha turma, turma de tantos Jorges, que foram e o que poderiam ter sido. Mas, diz-me aqui, talvez outro Jorge mais pé no chão, que não é possível conciliar harmonicamente o que é e o que deixou de ser. É, pode ser. Então, em homenagem à doce, competente e linda Natália Mendes, gostaria de propor uma reflexão para o que se é e o que poderá ser. Pensar prá frente e não para trás.
Pensar se o que somos foi a melhor escolha e, se não foi, considerar a possibilidade de tornarmo-nos naquilo que poderá dar a redenção a nossa existência, o encontro do significado, essa busca infinita que grita em nós e pede, em algum momento da estrada, para o ônibus parar, para descer do mundo e ter-se a certeza de estamos no caminho certo e, finalmente, na grande reunião de todas as possibilidades e escolhas, com todos os Jorges reunidos, encontrar a paz.
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