OPINIÃO

O violinista

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Estava ajudando, nesta madrugada de plantão, o atendimento de Marcos, garoto de 20 anos, sobrevivente da tragédia do trânsito em Rondinha. Vi seus exames, percebi seu prognostico a curto e médio prazo, pensei na família que aguardava com ansiedade e esperança as notícias dos médicos. Marcos tem tatuado em seu ombro direito a estampa de Jesus, o filho do carpinteiro. Não deve ter tatuado por acaso, certamente tem fé e quem a tem, de certo modo está confortável.

Quem abraça a crença, independente de sua natureza, tem o véu protetor, sabe da salvação ou da possibilidade dela. É assim, na crença, que entregamos ao Pai o destino de nossos filhos quando eles enfrentam as estradas em viagens de lazer ou de trabalho, como no caso de Marcos. Percebendo a gravidade da situação alguém perguntou a razão de a gente fazer plantão em emergências. Ponderei que se a vítima tem uma chance, por menor que seja, esta reside em nós, os da madrugada, os dos longos fins-de-semana. Felizmente somos úteis na maioria dos casos pelo fato de que temos formação para tal atendimento e os nossos hospitais oferecem estrutura para o serviço adequado. Se somos a esperança de recuperação dos jovens acidentados e paga-se tão pouco para tais atendimentos percebe-se a razão de que na maioria dos sistemas de urgências os responsáveis por salvar vidas de jovens são outros jovens, bem formados, é claro, mas sem a indispensável experiência para o atendimento completo. Nas emergências deveriam estar médicos com mais rodagem, mas não é o que se vê.

Há, do lado de lá da porta, uma mãe desesperada, um pai aflito por notícias. Muitas vezes elas não são boas, são tragédias. Primeiro lutamos pela vida dos pacientes, depois damos atenção ao que é possível preservar. Vi muitos garotos e garotas perecerem no hospital. Talvez fosse mais confortável ir pescar, mas não é esse o meu desiderato. Sou cidadão da urgência e emergências e bate-me a angústia quando sou útil e inútil simultaneamente, quando apesar de tudo, o paciente não sobrevive ou fica definitivamente sequelado. Como se supera a desgraça ? O violinista no telhado (filme de 1971, dirigido por Norman Jewinson) mostra que a inabalável confiança do judeu na divindade faz com que ele, ortodoxo, supere a dor porque somente a ele, o povo escolhido por Deus, poderia ser submetido a tamanho sofrimento. Ele superará, outra pessoa que não é do povo de Deus, não teria condição de suplantar.

A gente que não é judeu e não tem essa inabalável convicção tem que se virar com outras maneiras de superação. É pela maneira com que se enfrenta os problemas é que se percebe o tamanho do homem. Para enfrentá-los adequadamente é preciso estrada, sangue frio e lucidez, principalmente quando falta chão a muita gente. Essa transcendência para o enfrentamento das situações difíceis talvez seja a única herança que realmente tenha validade aos nossos filhos. É disso, de como suportamos os revezes, que lembrarão de nós quando a gente não tiver mais a condição de bater papo com eles.

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