Duas datas, 25 de outubro de 1955 e 11 de outubro de 1973, e um presidente, Juan Domingo Perón, delimitam o período de 18 anos que Jorge Luis Borges ocupou o cargo de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. A primeira assinala a posse de Borges na direção da Biblioteca Nacional, alçado ao posto, apesar das credenciais de intelectual de escol, pela “Revolução Libertadora”, que, protagonizando um golpe militar, em setembro daquele ano, depusera o presidente J. D. Perón. E, a segunda, a aposentadoria, motivada e apressadamente concedida, às vésperas da volta ao poder do mesmo J. D. Perón, democraticamente eleito em setembro de 1973.
A ascensão de Borges ao cargo de diretor da Biblioteca Nacional também marcou o final do “lento entardecer” da sua cegueira, que ele bem expressou no famoso “Poema de los Dones”, em que diz: “Nadie rebaje a lágrima o reproche/ esta declaración de la maestría/ de Dios, que con magnífica ironía/ me dio a la vez los libros y la noche”. De fato, para quem dizia sentir a gravitação dos livros que havia lido e produziu uma literatura tipicamente intertextual, que vai dos livros aos livros, a falta da visão, incapacitando-o para a leitura, tinha todos os ingredientes de uma tragédia; menos para J. L. Borges.
A passagem de Borges pela Biblioteca Nacional, mais que a notoriedade que essa alcançou graças à fama diretor, deixou como legado um tesouro, que começou a ser descoberto em 1992, por intermédio de Paula Ruggeri, uma funcionária da instituição, mas que ainda teria de esperar até 2010, para vir a público em sua plenitude. Em 1992, por ocasião da inauguração das novas instalações da Biblioteca Nacional, chegaram às mãos de Paula Ruggeri alguns livros com a assinatura e anotações pessoais de Jorge Luis Borges. Ciente da importância desses exemplares, Paula Ruggeri elaborou uma lista com 70 títulos que havia encontrado no acervo da instituição e deu conhecimento à direção da biblioteca, alertando que havia outros. Nada foi feito na época. Passaram seis diretores, desde 1992, e a descoberta de Paula Ruggeri, que nesse interregno aposentou-se, continuou sendo ignorada. Até que, em 2005, na gestão de Horácio Gonzáles, Laura Rosato e Germán Álvarez , também funcionários da biblioteca, tiveram o apoio que faltava para levar adiante a descoberta de Paula Ruggeri e começaram a investigar, em meio aos 900 mil volumes da Biblioteca Nacional, o rastro deixado por Borges, durante os 18 anos que ele fez daquela biblioteca a sua casa.
A busca empreendida levou cinco anos. O resultado da recuperação inicial de quase 1000 títulos (outros tantos foram encontrados depois) está condensado nas 416 páginas do livro “Borges, libros y lecturas”, uma espécie de catálogo, estudo e notas de Laura Rosato e Germán Alvarez, edição da própria Biblioteca Nacional, de 2010. Os livros, com anotações pessoais, sempre nas páginas iniciais e finais, que pertenceram à biblioteca pessoal de Borges e que, silenciosamente, foram doados ou lá deixados por ele em meio de corredores e prateleiras pouco visitados, permitem a reconstrução do processo de leitura de J. L. Borges.
A coleção Borges da Biblioteca Nacional contempla exemplares que tiveram origem na mítica biblioteca do seu pai e tratam de temas que interessavam ao escritor e tem lugar de destaque na sua obra. As notas são os rastros da inspiração de ensaios e contos memoráveis. Lançam luzes sobre a forma como o escritor tratava e onde buscava os grandes conceitos que usou na sua vasta produção literária.
As notas de Borges cessam em 1954, quando lhe falta a visão. Continuou a ler pelos olhos de terceiros, especialmente com o auxílio da mãe, Leonor Acevedo, que também deixou anotações nesses livros, ainda que poucas. Com o tempo, as notas de Borges passaram a ser feitas com a memória.
Definitivamente, Borges não foi um enigma na arte de escrever, mas sim na arte de ler. E quanto à “doação” dos seus livros, meio sem querer querendo, Borges sabia o que estava fazendo, pois no discurso que pronunciou em 8 de setembro de 1956, quando à frente da Biblioteca Nacional recebeu a doação dos livros de José Ingenieros, assim se manifestou: “ Los libros congregados e interrogados por un hombre constituyen también un aspecto de su obra y el mapa y espejo de su personalidad.” Borgeano, demasiadamente borgeano.
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