OPINIÃO

As memórias de Anildo Sarturi

Por
· 3 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+

Livros de memórias, ainda que muito apreciados pelos historiadores de tradição positivista, devem ser lidos com cautela devida e distanciamento seguro. Nesse tipo de obra, e não se poderia esperar algo muito diferente, em geral, prevalece a versão de quem escreve, podendo, como é comum acontecer, haver outra interpretação, que, inclusive, pode ser diametralmente oposta, para um mesmo fato. E isso, sem considerar que, quase sempre, a emotividade do autor se sobrepõe à razão, até porque, na grande maioria, não se tratam de obras historiográficas de cunho acadêmico hermético e sim de narrativas pessoais de determinados acontecimentos que são vividos, sentidos e como tal percebidos por alguém. Mas, não obstante essas particularidades, obras memorialísticas são fundamentais para o melhor entendimento da história.

Eu sou leitor contumaz de livros de memórias, especialmente quando o autor ou o assunto, preferencialmente ambos, me interessam. E esse foi o caso do livro “Passo Fundo – Memórias”, do médico e político Anildo Sarturi, que, por mero acaso, na véspera do último Natal, encontrei exposto na vitrine de uma livraria em Passo Fundo. Em geral esse tipo de livro, cujo copyright é de 2008, em impressão pela Gráfica Gold Print Ltda., habitualmente, não ganha espaço privilegiado nas vitrines de livrarias, por isso reitero o “por mero acaso”, além de que tampouco eu estava buscando ou sabia da existência desse livro. O nome do autor despertou a minha atenção, pois lembrei que fazia parte da relação dos membros da Academia Passo-Fundense de Letras (na época ainda Grêmio Passo-Fundense de Letras) dos anos 1950, e quanto ao assunto, Passo Fundo, é desnecessário qualquer explicação. Foi assim que, no intervalo entre o último Natal e o ano novo, me detive na leitura das 380 páginas de narração das memoriais de Anildo Sarturi, que surpreendem pela boa escrita e, a não ser pelos acontecimentos muito particulares, de interesse exclusivo do autor e seus familiares, prendem a atenção dos leitores, especialmente quando trata das disputas pessoais na política local e dos desdobramentos que sobrevieram ao golpe militar de 1964.

Anildo Sarturi não era natural de Passo Fundo. E isso talvez explique parte dos reveses que sofreu na cena política local. Nasceu em Tapera, formou-se em medicina, pela atual UFRGS, no final dos anos 1940. E, após quatro anos trabalhando em Sertão, como diretor do Hospital São José, estabeleceu-se em Passo Fundo, em 1952, com a intenção de montar a sua clínica e especializar-se em cirurgia geral, em meio a 38 outros profissionais da área médica que, na ocasião, atuavam na cidade. Era solteiro e passou a morar no Hotel Avenida. De pronto, juntou-se à equipe do Dr. Alberto Lago, que, conforme o qualifica Anildo Sarturi, “tinha obsessão pelo bisturi”, transformando-se totalmente quando na sala de cirurgia, e do anestesista Dr. Tobias Weinstein. O Dr. Alberto Lago era considerado o “primeiro rival” do Dr. Sabino Arias. Segundo Anildo Sarturi, o Dr. Lago e o Dr. Sabino Arias, ambos conceituados cirurgiões da época, competiam para ver quem fazia mais cirurgias semanalmente. Anunciavam nos jornais e nas rádios locais os nomes dos pacientes e o tipo de cirurgia que haviam sido submetidos, e cada um, a seu modo e com a sua torcida, vibrava nos cafés da cidade, quando um superava o outro em quantidade de cirurgias realizadas. Na visão de Anildo Sarturi, ainda que se respeitassem mutuamente, o Dr. Lago demonstrava certo ciúme do Dr. Sabino Arias, que havia sido trazido de Ernestina para Passo Fundo, por indicação do Dr. Vergueiro, e sobre quem se dizia que havia nascido no Egito, sendo judeu ou árabe, portanto não era católico, mas mesmo assim gozava do beneplácito do bispo Dom Claudio Colling, que o manteve como diretor médico do Hospital São Vicente de Paulo durante todo tempo que trabalhou como médico em Passo Fundo. A ambição do Dr. Lago, frisa Anildo Sarturi, era ser nomeado diretor médico do Hospital São Vicente de Paulo, sentindo-se, de certa forma, traído pelo Sr. bispo, que o preteria em favor do Dr. Sabino Arias, que era o médico pessoal de Dom Cláudio Colling. Em função disso, aos poucos, o Dr. Lago passou a concentrar a sua atuação médica no Hospital da Caridade, atual Hospital da Cidade. 

Continua na próxima semana...

Gostou? Compartilhe