Desde sempre se discute à cerca de quais são os fatores fundamentais que determinam o que somos. Uns alegam que somos mapeados geneticamente, escravos do DNA, impossíveis de deliberar ou escolher. Outros entendem que o meio define o comportamento. Uns perguntam se é o meio interno que determina o meio externo ou é o inverso. Penso no que me levou a escolher a profissão que abraço e concluo que fui mapeado, percebo claramente no meu histórico que sinais consistentes demarcaram a trajetória que viria a ter e que o meio que encontrei apenas delineou o já estabelecido. Portanto, o livre arbítrio, em meu exemplo pessoal, não foi o fator determinante, pois sou o que deveria ter sido. O meio em que vivi ajudou a construir.
12 de março, 1970, quinta-feira. Chegamos a Passo Fundo de muda, tinha 12 anos e a Vila Vera Cruz me pareceu simpática principalmente a larga Avenida Rio Grande logo abaixo do quartel, com suas árvores altas e que se estendiam até o Armazém do Ceratti. No dia anterior o cônsul japonês Nobuo Okushi fora sequestrado em São Paulo pelo grupo armada Vanguarda Popular Revolucionária, da qual fazia parte a senhora Dilma. No dia 25 do mesmo mês o presidente Médici ampliou o mar territorial brasileiro de 12 para 200 milhas marítimas. Meses mais tarde Eliana Pittman gravaria Das duzentas Para Lá e que minha mãe cantava junto no programa de Hélio Freitag que durava das onze ao meio-dia na Rádio Passo Fundo.
Passo Fundo diferia muito de Cruz Alta pois tinha dois times na primeira divisão do campeonato gaúcho, tinha a Universidade e Maria Elisabete. A gente respirava o orgulho universitário e a mística da menina milagreira. Elói, Vadi, Santarém, Raul, Olavo, Roberto, Luís Freire e os irmãos Pontes garantiam a respeitabilidade de nosso futebol.
Se tivesse permanecido na cidade natal minhas possibilidades profissionais seriam restritas a ser sargento do exército, tal qual meu pai, ou apontador do jogo do bicho, ou frentista. Talvez trabalhar no comércio ou pleitear um emprego num banco. Meus amigos de infância, ou pelo menos parte deles, batalhavam pelo agora, trabalhar de dia para comer à noite. A cada dia bastava seu sustento, não havia muitas expectativas ao futuro e nem a certeza deste. Passo Fundo, ao contrário, exigia mais porque havia a deliberação de estudar porque no estudo estava escrito o que se viria a ser.
Meus instintos primitivos, talvez oriundos do sistema límbico e já estabelecido pela genética me conduziam a tratar pessoas. Pacientes são pessoas tal qual nós. Eles têm sonhos, sangue, sentimentos, inseguranças, defeitos, iguaizinhos a nós. Passo Fundo foi o terreno fértil, junto com as amizades a que fui brindado e a quem homenageio nessa crônica, para o despertar do médico que em mim já habitava.
Dois meses depois, em maio, completei 13 anos, o Brasil foi tri no México, Antonio Marcos e Vanuza gravaram Namorada.
A bucólica cidade se transformava rapidamente. A construção civil, o polo de saúde, as comunicações, a rede de prestação de serviços, o comércio, tudo isso transformou nossa cidade em outra bem diferente da minha cidade natal. Alguns amigos e parentes cruzaltenses pensam ainda no agora, sem futuro, sem exageradas expectativas, nem nada. Pensam apenas em viver porque, afinal, não faz muita diferença em correr atrás da máquina ou esperar o trem chegar. Quem corre atrás apenas deixa de viver, muitas vezes, para buscar aquilo que exatamente não sabe definir ou quantificar, mas que parece ser qualquer coisa que não vida plena. Correr demais prá que se talvez nem haja futuro? Cruz Alta ainda me ensina, meus amigos de infância, também.