OPINIÃO

A última tentação do cientista

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A prática científica exige teorização. Não obstante, ainda hoje, alguns recalcitrantes, nas ciências biológicas e agrárias (há em outros domínios do conhecimento também), insistem em rotular, quase sempre com tom de menosprezo, de “filosofias”, qualquer formalização teórica que se afaste da sua visão empirista (experimental) de mundo. Parafraseando Cristo (com adaptação): “Perdoe-os, Pai; eles não sabem o que dizem!” E, de fato, não sabem o que dizem porque, com este tipo de atitude, demonstram sequer conseguir diferenciar uma teoria científica de uma teoria filosófica.

Desde Galileu Galilei que houve a dicotomia entre ciência e filosofia. Cada qual, com suas ferramentas, buscando o conhecimento e formalizando-o em teorias. Em essência, deixando de lado definições acadêmicas, pode-se dizer que uma teoria filosófica busca preservar princípios. E, neste contexto, tudo que não contribui para a integridade destes princípios é negligenciado. Por sua vez, uma teoria científica se preocupa em manter a coerência entre fato e experiência. A ligação entre teoria e fato é imperativa. Até porque muitas teorias científicas são formatadas a partir de resultados de observações empíricas. Os filósofos que se dedicam apenas à reflexão sobre princípios acabam perdendo contato com o mundo da experiência. E é daí que, possivelmente, advém o tipo de comentário descabido de “filosofias” para teorias científicas, feito, quase sempre, por quem não consegue alcançar seus significados. Praticar filosofia (filosofar) é refletir sobre os fundamentos daquilo que se faz. Pode-se pensar como um filósofo, propondo questionamentos, e se buscar respostas agindo como um cientista. Talvez este seja o ideal da ciência.

Inquestionavelmente, precisamos de mais e melhores teorias (e de teóricos, por sua vez); tanto científicas quanto filosóficas. Nas ciências biológicas, ambiente que ainda predominam os experimentalistas, podemos identificar teorias que se caracterizam como macro, meso e micro. Como exemplo de grandes teorias biológicas tem-se a teoria de Darwin sobre a evolução das espécies e a teoria de Gaia, de James Lovelock. Este tipo de teoria surge raramente e não desperta maiores interesses nos biologistas práticos, por se encaixar naquilo que eles rotulam de “filosofias”. As mesoteorias biológicas são mais abundantes e se inserem em domínios que tem aplicações imediatas, por isso são mais populares entre os “práticos”. É o caso das redes imunológicas. Já as microteorias são específicas por fenômenos (equação de Hodgkin e Huxley, por exemplo). São elas que dominam as publicações e os congressos científicos, parecendo herméticas para os que não são iniciados no assunto.

Os cientistas são humanos e, conforme bem destacou Edgar Morin, “de alguma forma, a ciência é um lugar onde se desfraldam os antagonismos de idéias, as competições pessoais e, até mesmo, os conflitos e as invejas mais mesquinhos”. E nesse ambiente, em que a fama pode exasperar tentações, torna-se fundamental para o cientista saber lidar com a atração para se comportar com indiferença e superficialidade diante de questões importantes e difíceis (sociais, por exemplo), que desmascaram a falácia da neutralidade dos homens de ciência. Não se deixar dominar pela vaidade (se considerar alguém especial) e pela inveja que, num mundo de competição, corrói os eternos insatisfeitos, sempre atribuindo aos outros as suas frustrações. Mas, a mais importante de todas as tentações, que impede o avanço da ciência, é a certeza. Sua manifestação dá-se em falas clássicas: “escutem, eu sei o que estou dizendo”, “isso é impossível” ou “já trilhamos esse caminho e não chegamos a lugar algum”. Nesse momento, o cientista cede e passa a viver num mundo sem alternativas e sem reflexão. Isso acontece muito no grupo dos experimentadores. Especialmente com aqueles que adquirem reconhecimento e poder acadêmico, não raro fazendo muito do mesmo, e é chegado um momento da sua carreira que decidem alçar outros vôos. Sob os auspícios da fama adquirida, traçam considerações sobre “a essência da alma” e discutem “o futuro da humanidade”. Mas, diferentemente do que imaginam, estando impregnados pelas “suas certezas”, não formulam novas teorias científicas. Aí é o fim: o Diabo venceu!

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