Jorge, 57 anos, cirurgião do trauma que já viu de tudo, mas que ao invés do imaginado, não se embruteceu com o tempo. Pelo contrário, tornou-se mais sensível, ao ponto de questionar até que ponto sua atividade médica de trinta anos foi realmente útil à sociedade. De que trata exatamente um cirurgião que trabalha com acidentados? Trata do remendo, do conserto, da tentativa da contemporização das lesões. Há, no seu celular, fotos de pacientes severamente lesionados. Nem sabe porque as guarda? Nesta noite de domingo, noite do dia das mães, percebe três ou quatro pacientes submetidos à cirurgia de urgência em decorrência de acidentes de trânsito, coisa que não tem fim. Gente morre, gente fica sequelada. Olha as fotos, olha os pacientes e não entende o mundo. Nada pior do que um homem de cinquenta e sete anos que não entende o mundo.
A vida é uma aventura, totalmente imprevisível, não se tem certeza alguma sobre o dia de amanhã, nem sobre o próximo minuto. Sabe, simplesmente, que a vida deve ser aproveitada ao extremo. Sabe que tudo tem seu tempo. Há tempo de sorrir e chorar, de lamentar e de se exasperar, de lutar e construir. Sobretudo sabe que não há muito tempo para chorar. Por isso mesmo, ao levar sua jovem filha ao aeroporto em seu retorno a São Paulo, chorou escondido por discretos, mas intermináveis minutos. Chorou porque sabe muito sobre despedidas, o que infelizmente é a rotina de um cirurgião do trauma. Mas, não entende porque há tantas razões para se chorar num mundo que talvez tenha sido projetado para a gente se jactar.
Recebemos um presente a desfrutar chamado vida. Cada dia que percebemos ao acordar seria possível pensar que o Criador aposta que podemos fazer algo no dia a mais concedido. O que fazemos, então? Geralmente jogamos o dia fora, não o valorizamos, não nos permitimos o sol ou a chuva, nem a noite ou dia, nem o convívio com as pessoas que amamos. Jorge, 329 não entende também porque nascemos para ser mais e optamos por ser menos.
Do que entende, então, um cirurgião do trauma. Entende de suturas, de drenos, de madrugadas insones, de plantões intermináveis. Desde 2008 são 329 noites de plantão fixos no hospital, noites em que quando dá tempo, aprofunda seus estudos em DVDs, livros e revistas. Entende cada vez mais da especialidade e cada vez menos da vida e das razões de se morrer estupidamente e acidentes de trânsito. Jorge entende que vivemos um mundo de guerra no trânsito. Jorge não entende a inércia em relação a isso. Sabe-se que as estradas mais perigosas da região são Passo Fundo-Marau, Passo Fundo-Tapejara. Que ações foram feitas para diminuir a carnificina? Talvez, somente quando a desgraça bater a nossa porta seremos obrigados a refletir mais sobre o assunto.