O automóvel é a extensão de teu corpo, disse meu instrutor de direção na primeira aula. Contrariava minhas lições de Ciências: “O corpo é formado de tronco, cabeça e membros”. A qualidade da parte extensa depende da índole do sujeito possuidor do principal. Tenho verificado, nestes vinte de motorista, a verdade do aforismo. Para alguns o carro é extensão de seu ódio, para outros de sua gentileza. Com essa extensão do corpo (e da alma) andamos por aí matando ou salvando. Mais matando que salvando.
Passo Fundo, toda semana, chora suas vítimas no trânsito. Alguns cruzamentos tornaram-se lugares comuns, literalmente.
O automóvel tornou-se mais importante que a casa. Há muitos com carro de luxo e morando de aluguel. Não é fácil levar a casa para as festas, para o trabalho, para um encontro de amigos. Difícil ostentar suas torneiras de ouro, os azulejos importados, ou o mármore italiano da pia da cozinha. Demonstrar para amigos e garotas que somos poderosos, ricos, bem sucedidos e um sucesso, é uma necessidade de vida ou morte. Colegas se impressionam mais com um carro de alto padrão do que com nossa felicidade no amor.
No século XX cerca de 35 milhões de pessoas morreram em acidentes de trânsito. Os feridos totalizaram 1,5 bilhão. A cada final de semana, aumentam as estatísticas de tragédias no trânsito. A Lei Seca teve pouco significado neste contexto todo.
Num mundo de automóveis fáceis, exercer o amor ao próximo no volante é maior imperativo. Em 2007, a Igreja Católica publicou um documento em que recomenda os 10 mandamentos do trânsito:
1) Não matarás;
2) A estrada seja para ti um instrumento de ligação entre as pessoas, não de morte;
3) Cortesia, correção e prudência para te ajudar a superar os imprevistos;
4) Ajudar o próximo, principalmente se for vítima de um acidente;
5) Que o automóvel não seja um lugar de dominação e nem lugar de pecado;
6) Convencer os jovens sem licença a não dirigir;
7) Dar apoio às famílias que tenham parentes vítimas em acidentes;
8) Reúna-se com a vítima com o motorista agressor em um momento oportuno para que possa viver a experiência libertadora do perdão;
9) Proteger o mais vulnerável;
10) Você é o responsável pelos outros;
Ateus ou crentes, precisamos tomar o trânsito matéria obrigatória de meditação. Muitas pessoas aguçam o instinto de domínio, prepotência e poder quando dirigem; o automóvel é usado como objeto de ostentação para ofuscar os demais e suscitar invejas. O texto católico também denuncia comportamentos “pecaminosos” em muitos motoristas, como a falta de cortesia, gestos ofensivos, discussões, blasfêmias, perdas do senso de responsabilidade e violação deliberada das leis de trânsito.
Meu instrutor esqueceu de me dizer ou, talvez, eu não estivesse muito atento. Além de extensão de nosso corpo, o automóvel é, sobretudo, extensão da nossa consciência. Sem ela, as leis externas não possuem coação alguma.