A morte de Bernardo Boldrini, com a anuência de seu pai, e antecipada por uma pública falta de amor familiar, põe à mesa a discussão sobre a importância dos laços sanguíneos na vida da criança, em contraponto aos vínculos afetivos. Bernardo, que havia pedido socorro ao poder judiciário por conta própria, queria uma família substituta e indicara um lar onde se sentia querido. As autoridades, seguindo a lei existente, tentaram a todo custo preservar a relação sanguínea. Resultado: o assassinato da criança. Questão para refletirmos neste domingo, 25 de maio, Dia Nacional da Adoção: deve o DNA preceder ao amor?
Famílias, podendo ou não ter filhos, ao querer adotar enredam-se em longa burocracia. Quase sempre, seu filho do coração adentrará à casa marcado pela violência e rejeição da família biológica, pelos anos de abrigamento sem vínculos afetivos, emocionalmente fragilizado e fisicamente doente. Por falta de amor, essas crianças, crescidas enquanto se tenta obrigar a biologia a gerar carinho, constroem ao seu redor uma muralha para novos laços.
Aconteceu conosco. Esperamos quase cinco anos, o conhecemos com três anos e dois meses. Com esta idade, de genitora usuária de drogas, meu filho já havia passado por tentativas frustradas de inclusão em sua família biológica. Seu pai, então um desconhecido, demorou para ser encontrado e concordar com o processo. A instabilidade emocional, do agora meu filho, prejudicou sua adaptação em duas experiências anteriores de aproximação a outras famílias. Um menino de “difícil manejo”, como constava em seu parecer psicossocial, precisava de muita teimosia e paciência para deixar-se amar outra vez.
Deve a biologia suplantar o amor? Basta dinheiro para educar um filho?
O caso Boldrini responde: não. Não basta DNA compatível, uma casa confortável, um pai ou mãe bem sucedidos. Uma criança implora um lar seguro afetivamente, uma família amorosa, um espaço de proteção e segurança. O poder familiar não pode estar vinculado aos laços sanguíneos, mas à capacidade de afeto. Se a família não amar a criança, e isso for provado, o Estado deve retirá-la o mais breve possível, e colocá-la onde houver afeto. Amor sobremaneira é tempo. Genitores sem tempo não podem ser pais. Razões para mudar a lei.
Contrário do senso comum, adotar não é caridade, mas carência. Se quiser fazer caridade, não adote. Adotar é um direito, não um dever. Homens e mulheres, carentes de filhos, tem o direito de exercer a paternidade, se tiverem as condições necessárias. Questão de justiça para as crianças e para o mundo. Não é justo uma criança viver sem amor, quando há centenas de homens e mulheres de amor transbordando. O Estado, que cobra impostos e distribui renda, tem uma obrigação muito maior: distribuir carinho de modo igualitário para todos seus pequenos cidadãos. No amor, o Estado deve promover um encontro de direitos: dos pais sem filhos com os filhos sem pais.
No dia de abertura da Copa, nosso filho, sociável e amoroso, completará cinco anos de mundo. Em agosto, dois anos de nosso filho. Sua professora nos acalma: “ele não é diferente de nenhum de seus colegas, fiquem tranquilos”. Bastaram dois anos para um “menino de difícil manejo” tornar-se apenas um menino. Coisas que o sangue não fez o amor construiu. Para ele, - que ainda mantém a memória de seu passado, e pede as razões de nossa demora para encontrá-lo-, explico: culpa de um anjo bocó, te deixou na casa errada. Para você, serei técnico: culpa da natureza, que enxertou sangue de outros pais em nosso filho.