Estou em Cerro Largo. Fui convidado como “atração” de sua Feira Cultural que, entre outras atividades, encerra um trabalho de leitura e literatura nas escolas do município. Nosso estado é o mais bem sortido de feiras do livro do Brasil. Embora ninguém veja na televisão nem ouça nas rádios, além de Xuxa, Gisele Bündchen e Fernanda Lima, aqui nasceram escritores do quilate de Moacyr Scliar, Simões Lopes Neto, Érico Veríssimo, Josué Guimarães, Cyro Martins... Esses grandes inventores de metáforas abriram caminhos pampa afora para médios ou pequenos como eu.
As conversas com alunos serão amanhã. Cheguei mais cedo em razão de um evento em Três de Maio ter sido adiado. Caminhei pela cidade, conheci sua praça criativa, misturando espécies do sul,- como a paineiras, butiá e bananas-de-bugre e outras tiradas da Amazônia, já vistas em jardins do Burle Max e nem sei o nome. Bonito ver uma pequena cidade com conhecimento da estética do paisagismo.
Na padaria, ouvia uma rádio local, e experimentava uma torta de requeijão com café. Folheei os jornais. Quarenta minutos e nada sobre a Semana Cultural da cidade. Ao pedir outro café, uma notícia bombástica na rádio local: “Lady Gaga cancela show por estar com bronquite”. Depois da manchete, lá ficou a locutora explicando a doença, o pedido de desculpas de Gaga aos fãs. Depois encerrou com uma “música” da “artista”. Ao todo foram uns quinze minutos em que Lady Gaga teve sua importante e contribuição à humanidade reconhecida em Cerro Largo.
Peguei outro jornal e cronometrei uma hora desde a minha chegada. Depois de Gaga, a locutora falou sobre os “cantores” da música-tema do mundial. Os butiás - recolhidos na praça tão bonita - me caíram dos bolsos. O que fez Lady Gaga de tão importante em Cerro Largo, ou em Marau, ou em Porto Vera Cruz, ou na Linha 18 Roso, para ter quinze minutos do rádio quando um evento cultural sequer foi mencionado durante mais de uma hora de programação?
Isso não é exclusividade daqui. É corriqueiro em todas as cidades do RS, do Brasil, quiçá, do mundo. A indústria de dejetos culturais fabrica ídolos, convence todo o planeta a admirá-los, repete isso na TV, nas rádios, nos jornais, tanto, mas tanto, que eles se tornam bons por repetição, e seus excrementos ouro de tolos. Por outro lado, eventos culturais agonizam em Cerro Largo, em Passo Fundo, em Santo Antonio do Palma e em Cananéia-SP para conseguir uma notinha sequer nos jornais, nas rádios. Nem penso na TV, quando qualquer menção cultural é uma morte de papa.
Vejam, por exemplo, o lixo que é esta música-tema da Copa. Quatro ou cinco palavras repetidas à exaustão por rebolados da indústria de dejetos culturais. Muito mais vergonhoso que eventuais problemas com as obras. Somos reconhecidos no mundo todo pela qualidade de nossa música e a canção-tema é uma porcaria sem tamanho. Pior é os programadores de rádios e TV, que tinham a obrigação de ter formação cultural, obrigarem-nos a ouvir tão medonho enredo.
Vou-me embora de Cerro Largo sem saber qual foi o impacto da notícia sobre a bronquite de Lady Gaga na cidade, sem saber quais mudanças provocou, se o cotidiano das pessoas será diferente. Embora indignado, sei quão efêmeras são essas figuras inventadas.
Daqui a alguns anos, voltarei a Cerro Largo, e a celebridade da hora será outra. Comendo torta alemã na mesma padaria, ouvirei sobre a dor de dente de um cantor de rap cuja música estourou no mundo.
No dia seguinte, como será amanhã, conversarei com crianças e jovens sobre o poder da leitura, da cultura, da imaginação, em eventos que, mesmo sem muito apoio dos meios de comunicação de massa, se mantêm em todo o RS, graças à quixotesca esperança de professores, secretárias de educação, prefeitos crentes mais na cultura que em estátuas.
E o escritorzinho aqui, podendo alegar uma bronquite para ser notícia, mesmo quase sem voz, enfrentará amanhã quase mil crianças do município que leram o livro de um sujeito nunca visto por elas na televisão e cujo nome tampouco ouviram no rádio. Esquecerei Lady Gaga. Daqui levarei apenas um largo sorriso esperançoso nos beiços, quase tão bonito quanto sua paisagística praça.