OPINIÃO

Os denunciantes invejosos, segundo Lon Fuller

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Lon Luvois Fuller (1902-1978) foi professor de Teoria Geral do Direito na Universidade Harvard nos EUA. A par de ter sido considerado um dos mais importantes filósofos do direto no século 20, sua fama, de fato, começou com um breve ensaio intitulado “O caso dos exploradores de cavernas”, publicado em 1949, na Harvard Law Review. Nele, Fuller conta a história de cinco cientistas que ficam presos em uma caverna sem alimentos suficientes para sobreviverem até que o resgate desobstrua a entrada da gruta e eles possam sair com segurança (algo parecido com o caso dos mineiros no Chile, em 2010). Eis que então, quatro deles decidem matar o quinto colega para que possam se alimentar e, com isso, salvar as próprias vidas. E essa história, que mais parece roteiro de filme de terror, leva ao grande debate se os sobreviventes devem ser punidos por homicídio doloso ou não? De fato, Fuller quis provocar uma discussão sobre o que é justo e injusto, ou, no fundo, sobre o que é Direito. É, acima de tudo, um convite à reflexão sobre o caso, a partir de opiniões que levam em conta a vontade dos legisladores, a posição de doutrinadores e as decisões dos tribunais.

A mais profunda e original obra de Lon Fuller talvez seja “The morality of law” (A moralidade do direito), publicada em 1964. E, nesta obra, embora não tão conhecido e nem tão comentado por estudantes e professores de direito em todo o mundo como “O caso dos exploradores de cavernas”, Fuller incluiu, como apêndice, um texto denominado “O problema do denunciante invejoso” (“The problem of the grudge informer”), que, na língua portuguesa ficou conhecido como “O caso dos denunciantes invejosos”. O texto relata que durante uma ditadura muitas pessoas denunciaram seus inimigos sabendo que os tribunais do país, aplicando a legislação da época, pronunciariam a pena de morte para delitos que, objetivamente, não eram graves. Após a queda do regime ditatorial, os denunciantes, que Fuller chama de “invejosos”, foram objetos de execração popular. Ainda que os denunciantes não tivessem cometido nenhum delito, pois só levaram ao conhecimento das autoridades fatos puníveis segundo a legislação em vigor, muitas pessoas exigiram sua punição. O caso é fictício, mas se aplica muito bem quando regimes democráticos sucedem a ditaduras, surgindo a questão do punir ou perdoar, no contexto da temática da justiça de transição. Ou, ainda, se quisermos, pode ser extrapolado para o dia a dia das corporações, em que um amplo normativo interno exige a tomada de decisões, quase sempre, no calor dos acontecimentos e, não raro, contrariando uns e agradando outros.

O texto de Fuller sobre os “denunciantes invejosos” é útil por trazer o debate de um caso cuja solução não pode ser dada pela simples aplicação de uma norma. Exige uma análise mais profunda sobre a relação, nem sempre harmônica, entre moral e justiça. É um convite à reflexão, por exemplo, para quem tem o dever de administrar uma empresa e de operar normas (mesmo que estas não sejam leis) em um ambiente em que as motivações das pessoas nem sempre são as que aparentam. E, indiscutivelmente, onde há quem se utilize de normas muitas vezes apenas com o intento de prejudicar terceiros. Ou, por analogia com Fuller, em que indivíduos agem como os “denunciantes invejosos” que se utilizavam dos tribunais para realizar suas intenções criminosas, motivadas pela inveja, valendo-se da força do Estado para satisfazer sua perversão. Acima de tudo, deixa como lição, para quem cabe o dever de decidir, que se deve ter muita clareza sobre a utilidade das decisões (não vale decidir apenas por uma questão de mera conveniência política ou de relacionamento pessoal).

É inegável que os que procedem como os “denunciantes invejosos” buscam é instrumentalizar o direito para se vingar de inimigos pessoais. Para isso se apegam a normas como se essas tivessem um fim em si mesmas. Ignoram as imprevisibilidades e negam qualquer possibilidade de aplicação criativa, sensível e inteligente do normativo vigente, atuando como autênticos iluministas e positivistas em pleno século 19. E mais: parecem desconhecer que vivemos em uma sociedade civilizada, solidária e fundamentada em princípios que dão sentido à vida social.

Mas, Lon Fuller foi professor em Harvard. E há quem diga que Harvard não é uma Universidade: “Harvard é um mito”.

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