São raros os que costumam prestar a devida atenção (e merecida reverencia) aos nomes daqueles profissionais que, para muitos de nós, constituem-se na única forma de acesso a textos, técnicos ou literários, escritos em outras línguas. Estamos nos referindo aos tradutores que, vertendo obras para idiomas diferentes daqueles que foram originalmente escritas, na verdade, de forma quase invisível, acabam produzindo uma “nova obra”.
Entende-se a tradução como uma forma de autoria, embora derivada. Todavia, a nossa tradição é cultuar o autor e negligenciar a uma posição secundária o tradutor. E isso acaba se refletindo nas leis sobre direitos autorais, nos códigos nacionais e nos tratados internacionais, que retratam uma espécie de subordinação dos tradutores aos autores. Tomem-se como exemplo as listas dos livros mais vendidos, publicados em jornais e revistas, que são majoritariamente formadas por obras estrangeiras traduzidas.
Não se pode ignorar que há criação intelectual em trabalhos derivados (caso das traduções). Em geral, os autores estrangeiros escrevem dirigindo-se a uma comunidade linguística e cultural que não inclui os leitores de seus trabalhos depois de traduzidos. São os tradutores que cumprem o papel de orientar o texto original para outros públicos, cuja exigência de inteligibilidade em termos de língua e cultura traduzidas vão muito além da intenção original do autor. Não há como um escritor estrangeiro cruzar uma fronteira linguística e cultural sem a influência/ajuda do tradutor. Isso é notório até mesmo entre países que falam a mesma língua, caso do inglês usado no Estados Unidos versus na Inglaterra ou do português falado/escrito no Brasil frente ao de Portugal.
O inglês é a língua mais traduzida em todo o mundo. Não obstante, é a língua para a qual menos se traduz. Uma questão de dominação econômica há que se supor (também, mas não só). Isso, indiscutivelmente, ajuda a criar no público leitor de língua diferente da obra original uma maior sensibilização para os produtos culturais (valores e bens) de países hegemônicos, em geral.
O mercado editorial tem, cada vez mais, concentrado investimentos nos chamados best-sellers. As editoras nacionais (muitas integrando corporações transnacionais) costumam apostar em textos estrangeiros que obtiveram sucesso comercial em sua cultura de origem, esperando que alcance também um bom desempenho de venda numa cultura e língua diferentes. Isso contribui para estabelecer uma espécie de relação hierárquica entre línguas maiores e menores e entre culturas hegemônicas e subalternas.
Há tradutores (ou editoras) que, de forma deliberada ou involuntariamente, contribuem ou se prestam para a exploração de textos e culturas estrangeiras. Colocam o traduzido a serviço da cultura tradutora. Exemplificam bem esse caso as traduções americanas dos livros do escritor italiano Giovanni Guareschi, durante a Guerra Fria. As traduções inglesas dos livros de Guareschi foram sucesso de venda desde o lançamento do The Little World of Don Camillo, em agosto de 1950, primeiro nos EUA e depois na Inglaterra. Prestavam-se à propaganda anticomunista ao mostrar as aventuras de Dom Camilo, sacerdote num vilarejo no norte da Itália, que vivia em escaramuças ideológicas com o prefeito comunista, Peppone, e das quais, invariavelmente, sempre se saia vencedor. Dom Camillo era pintado como o virtuoso e ligado ao bem e Peppone era uma espécie de idiota e relacionado com o mal.
A tradução de uma obra tem como objetivo principal promover inovação e mudança cultural. É evidente que os efeitos e funções (ou usos) de um texto traduzido não podem ser totalmente previsto ou controlados em sua plenitude. E são essas incertezas que, em vez de diminuir, aumentam a responsabilidade do tradutor e estão a exigir uma maior valorização e reconhecimento do seu trabalho, pelo menos por nós, LEITORES.