Muitas vezes fui pressionado a explicar minha literatura com o analfabetismo de meus pais: “Como você se transformou em leitor, primeiro, e escritor, depois, com pais carentes das letras?”
A Feira do Livro de Passo Fundo deste ano tem como lema “A leitura através das gerações” e pretende refletir sobre a influência de uma geração sobre a outra no ato de ler.
Meus pais eram analfabetos, mas eficientes contadores. Nos tempos sem energia elétrica, a família se reunia à noite ao redor do fogão à lenha, e meu pai desfiava histórias. A contação mesclava os contos de terror conhecidos com o folclore gaúcho de Negrinho do Pastoreio e Boitatá. Uma ou outra aventura do Pedro Malazarte se misturava às histórias mais ou menos reais da infância de meu pai. Quando fazia uma pausa, minha mãe tomava a palavra. E assim nossos olhos iam definhando pelo sono.
Não é impossível descobrir a leitura por conta própria, mas é muito mais rápido e eficiente quando viemos à luz numa cultura de histórias. Elas, orais ou escritas, constroem um berço para rejuntar os fragmentos da vida. Por isso, as narrativas nos atraem. Com esse corpo de palavras, - de início, meio e fim, - onde o conflito se destrincha, iludimos o cérebro convencendo-o de que nossa vida terá desenlace similar. A vida, antes insossa, descobre sua semântica. A literatura é um remédio para se suportar a existência, e esse é seu principal mérito.
Nas viagens pela pampa já encontrei muitos leitores contumazes. Quando relatam o motivo de seu gosto pelos livros, sempre aparece uma figura familiar. Esses meninos e meninas lembram do pai ou da mãe com livros na mão, ou lhes contando histórias. Muitas vezes é uma avó ou um avô, um tio, uma tia, irmãos mais velhos ou vizinhos.
Ou seja, leitura é herança. Assim como ensinamos os mais novos a andar eretos, a falar, a se alimentar, transmitimos a eles o ato humano de decifrar signos gráficos com seu bojo de significâncias. Nossos descendentes recebem de nós histórias que recebemos de nossos ascendentes, mas também o ato de acordá-las para o mundo. Isso se chama cultura.
Uma das melhores maneiras das pessoas aprenderem a ser humanos é com os personagens da ficção. Num mundo economicista, pais e avós se preocupam mais em preparar os filhos e netos para o sucesso financeiro e profissional. Esquecem que a vida exige muito mais do que manejo do dinheiro e da carreira. Quando escuto histórias como a de Leandro Boldrini, - um médico bem sucedido, mas que não desenvolveu vínculos com seu filho Bernardo - me pergunto se o enredo não teria sido diferente se ele tivesse reservado um pouco da vida para ler para com seu herdeiro.