Notícias sobre suicídios e cartas deixadas por suicidas, pelo menos a vasta maioria, por uma espécie de código tácito de conduta que impera no ambiente das redações dos veículos de comunicação, não costumam ser divulgadas e nem ganham repercussão; mesmo em jornais, revistas e programas de rádio e TV que são ditos populares. E muito menos isso acontece nas chamadas revistas científicas, cuja missão é a divulgação de contribuições e relatos de pesquisa, presumidos, a prior, como originais. Mas, como tudo na vida há exceções, esse não foi o caso do biólogo austríaco Paulo Kammerer, cujo desfecho trágico começou a ser anunciado nas páginas da prestimosa Nature e terminou na não tão menos celebrada Science.
O suicídio de Paul Kammerer é emblemático na história da ciência, pois embora tenha ocorrido em 1926, de tempos em tempos o fantasma do cientista suicida ressurge para reabrir as discussões com novas intepretações sobre os acontecimentos do passado.
Paul Kammerer, lamarckista convicto, como muitos dos seus pares no começo do século 20, trabalhava no Instituto de Biologia de Viena, o famoso Vivarium. Era um sujeito inteligente, que se diferenciava pela capacidade de comunicação como palestrante e escritor de artigos para jornais e revistas de divulgação, pelos livros que escrevia, pela convivência no meio artístico vienense (era músico) e pelas muitas mulheres que, dizem, se apaixonaram por ele. Inimigos não lhe faltavam. Numa época que Mendel recém começava a ser descoberto na Inglaterra por William Bateson e ainda não havia sido concretizada a fusão de Darwin e Mendel, com o neodarwinismo, que só aconteceria nos anos 1930, a herança dos caracteres adquiridos, na prática o lamarckismo, era uma discussão muito em voga. Kammerer produziu resultados experimentais com salamandras, com tunicados e com sapos, que lhe alçaram à fama de ter provado a questionada herança dos caracteres adquiridos. A sua derrocada, casualmente, veio do suposto êxito alcançado com uma espécie de sapo cujo macho carrega nas pernas traseiras os ovos depositados pelas fêmeas.
Esse sapo macho chocador difere dos demais pela falta, nos membros anteriores, das calosidades pigmentadas, que são necessárias à copula. Kammerer afirmou ser possível mudar o hábito chocador desse tipo de sapo macho e desenvolver lhe, hereditariamente, as calosidades pigmentadas das outras espécies. Experimento feito e resultados publicados, mostrando que em seis gerações foi possível tal façanha, seguiu-se uma discussão entre defensores e detratores de Kammerer. Em 1919, um repto, encabeçado por Bateson, o principal vocal entre os acusadores, pedia a submissão de exemplares desses sapos chocadores a exames por terceiros. Kammerer, no primeiro momento, recusou. Até que, em 1926, cedeu o exemplar remanescente dos sapos do seu famoso experimento para ser analisado por G. K. Noble, do Museu Americano de História Natural, e Hanz Przibram, diretor do instituto que Kammerer trabalhava. No exame foi descoberto que a pigmentação dos membros anteriores desses sapos, supostamente adquirida por herança, havia sido artificialmente feita com tinta.
O relato desse achado, em notas separadas assinadas por Noble e por Przibram, foi publicado na edição de 7 de agosto de 1926 da revista Nature (v.118, n. 2962, p. 209-211). Caía por terra a alegada prova da herança adquirida e, Kammerer pego numa suposta fraude científica, escreveu uma carta, datada de 22 de setembro de 1926, que enviou aos editores da Science, dando a sua versão dos acontecimentos e anunciando a intenção do suicídio, que se concretizaria, com um tiro, no dia seguinte. A carta de Kammerer saiu publicada na Science, edição de 19 de novembro de 1926 (v.64, n. 1664, p. 493-494), e essa história, que nunca teve fim, vem se desenrolando em filmes, livros e artigos científicos até os nossos dias. (continua...)