Um tiro na cabeça, em uma estrada em meio à floresta da montanha de Puchberg am Schneeberg, no subúrbio de Viena (80 km ao sul), no dia 23 de setembro de 1926, selaria o trágico desfecho anunciado pelo próprio Kammerer na carta do dia anterior dirigida ao presidente da Academia de Ciência de Moscou, cuja cópia, que fora endereçada editor-chefe da revista Science, seria publicada na edição de 19 de novembro daquele ano. Enquanto no Ocidente o suicídio de Paul Kammerer, à primeira vista, soou como uma espécie de confissão de culpa pela fraude científica perpetrada, na União Soviética ele passou a ser visto como uma espécie de herói popular, usado pelos stalinistas no poder como exemplo de vítima da biologia burguesa e capitalista.
Paul Kammerer, antes da publicação na revista Nature da suposta fraude do caso do sapo chocador, havia renunciado ao cargo que ocupava no Instituto de Biologia Experimental de Viena e se dedicava a palestras e a paixões mundanas diversas, enquanto preparava a mudança para Moscou, onde, a convite do poderoso comissário da educação da nação soviética, Anatoly Lunacharsky, assumiria o posto de professor na Universidade de Moscou e membro da Academia de Ciência. O suicídio transformou Kammerer em lenda na Rússia. Anatoly Lunacharsky, admirador confesso de Kammerer, não deixou a sua memória ser esquecida; pelo menos de imediato. Encomendou um filme, produção russa e alemã, de qualidade e gosto questionáveis, intitulado Salamandra, que, indiretamente, retratava a história de Kammerer, personificado na película pela figura do professor Karl Zange.
O professor Karl Zange (entenda-se Paul Kammerer) trabalhava com salamandras em uma universidade europeia. Nos experimentos, ele conseguiu mudar a cor das salamandras via a manipulação do ambiente. E, depois de um tempo, essa mudança de cor, uma característica que fora induzida pelo ambiente, tornou-se hereditária. Nada muito diferente do que Kammerer alegara ter feito com os sapos chocadores, mudando o hábito de acasalamento de terrestre para aquático pela elevação da temperatura do ambiente do aquário em que esses animais eram criados. A descoberta desagradou um religioso, que, temendo o fim dos privilégios da Igreja, alicerçados no criacionismo, instigou um auxiliar de Zange a praticar uma fraude, trocando a salamandra que seria usada no anúncio público da grande descoberta por outra cuja coloração fora forjada com uma injeção de tinta preta. Essa salamandra adulterada quando foi colocada num pote com água foi perdendo a cor e o constrangimento em meio aos presentes generalizou-se.
O professor Zange foi acusado de impostor e acabaria sendo demitido da universidade. Vira um andarilho que perambula como pedinte pelas ruas e, desesperançado, pensa em se matar. Eis então que encontra uma ex-aluna russa que decide ajudá-lo, conseguindo uma entrevista com o comissário da educação daquele país, cujo personagem é vivido no filme pelo próprio Lunacharsky, que se compadece com a história do professor vítima de perseguição burguesa. O papel da ex-aluna russa é interpretado pela atriz Natalya Rozenel, que na vida real é casada com Anatoly Lunacharsky. Enfim, os Lunacharskys reinam absolutos nesse filme. No exato momento que Karl Zange, sem mais esperanças, vai cometer o suicídio, recebe a notícia do convite de Lunacharski para ele ir trabalhar em Moscou. O filme, mesclando imagens reais de Kammerer, não deixa qualquer dúvida que se trata da sua história, apesar do final idealizado, que é muito diferente da realidade. Na última cena, os dois personagens são retratados marchando para leste, rumo à “terra da liberdade”.
O caso Kammerer - com notas na Nature e na Science, com o suicídio do protagonista principal e o filme Salamandra -, desde o final dos anos 1920 até hoje, vem sendo discutido nos meios científicos. Que tipo de pessoa era Kammerer? Cometeu ou não a fraude dos sapos chocadores? (continua...)
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