Estive em férias e meu roteiro incluiu a Áustria. Como era de se esperar, fui visitar a casa de Freud em Viena. A vida de Freud e a história do início da psicanálise estão entrelaçados de modo indissociável.
O testemunho mais vivo e fidedigno da criação da psicanálise encontra-se nos 24 volumes escritos por Sigmund Freud, que são complementados pelos três tomos de seu biógrafo oficial, Ernest Jones: The Life and Work of Sigmund Freud, em que podemos vislumbrar o contexto social e político, assim como as influências intelectuais e culturais do movimento psicanalítico em Viena e no mundo. Mais recentemente, em 1988, contamos com a visão do historiador Peter Gay com seu Freud: A Life for Our Time.
Quando passamos muito tempo em companhia de um autor, no momento em que acabamos de lê-lo, é um adeus que damos a quem manteve um contato muito íntimo conosco e certamente seu discurso produziu associações, sentimentos e conhecimento inusitados em nós. Mas com Freud nunca é um adeus - é sempre um até logo! Sempre voltamos a ele. Talvez este seja um dos motivos pelo qual cada um de nós psicanalistas sempre acha que tem uma relação especial e diferenciada, seja com Freud, Lacan ou com a própria Psicanálise.
Então, ao chegar na Bergasse 19, edifício em que se encontra o consultório e o apartamento de Freud, hoje transformado em museu, a sensação experimentada foi de muita emoção. Fiquei imaginando o que ele teria sentido ao entrar (como eu naquele momento) em seu edifício, num congelado entardecer, subindo aquelas escadas, tocando naquele corrimão e decidindo se ia para o consultório ou para casa. Deixaria a ele também mais nostálgico este anoitecer precoce com neve? E como foi em 1914 quando iniciou a primeira Guerra Mundial e ficou impossível aquecer a casa, e, mesmo sob uma temperatura negativa, ele continuou escrevendo e escrevendo até tarde da noite, depois de oito a dez horas de trabalho, o que lemos até hoje? Repetindo o que já disse, tenho a impressão que para os psicanalistas a emoção é maior que para qualquer outro turista, devido a “intimidade” que sua narrativa provocou ao longo do tempo.
Mas eis o que mais gostei: o museu é cuidado por judeus. E quando chegamos para começar a visita no consultório, coloquei o áudio que ia informando que estávamos na sala de espera de Freud. Não era difícil imaginar, os móveis estavam preservados, semelhante ao que tantas vezes vimos em fotografia. E em seguida cruzamos uma porta para entrarmos no tão esperado consultório, cujo divã deitou Ida Bauer (1882-1945), Ernest Lanzer (1878-1914), Sergei Pankejeff (1887-1979) e tantos outros. Cruzamos a porta e...vazio! A explicação veio em seguida: “Poderíamos ter refeito os móveis de Freud, seu divã, sua poltrona, à perfeição. Mas decidimos não reconstruir e nem trazer de Londres onde estão os originais. Optamos deixar vazio o consultório de quem teve que sair correndo na época do nazismo para a Inglaterra, para que Viena lembre, com vergonha, o que permitiu. “
Eu tinha conhecimento que o divã de Freud se encontrava em Londres em Maresfield Garden, que foi sua residência quando os nazistas tomaram a Austria e hoje é um museu muito mais completo que o de Viena. Mas de qualquer forma, entrar no seu consultório sem o seu divã é uma experiência que incita a presença do que queremos esquecer: de que sempre podemos ser responsabilizados. Se não fomos antes, porque sequer havíamos nascidos, podemos ser hoje.
Sim, porque um fundamentalismo, nazismo, fascismo e outros “ismos”, de direita ou de esquerda, só se instalam com nossa conivência. Como disse Contardo Calligaris, psicanalista e colunista da Folha de São Paulo: "Claro, o horror pode ser a obra de fanáticos ou de “monstros”, mas ele nunca é eficaz se não for acompanhado pelo silêncio e pela distração do homem comum – ou seja, o horror sempre pede alguma cumplicidade das ditas “pessoas de bem”.