Uma mensagem lacônica no celular. “O Valmor Bordin acaba de falecer. Será sepultado em Jacutinga, onde nasceu. Terça-feira, 10 de março de 2015”.
Valmor não gostaria que falassem dele. Era daquele tipo de médico discreto, passava a quilômetros das colunas sociais. Gostava mesmo é das palavras e com elas criava significados. Posso dizer, sem medo, que ele era um organizador de mundos pela palavra. Como psiquiatra, ouvia seus pacientes e costurava suas histórias preenchendo lacunas, juntando fragmentos. Como escritor, fragmentava a vida e os personagens para que o leitor mesmo inventasse a cola entre os cacos, a costura entre os retalhos, o conflito subjacente à superfície.
Tento imaginar Valmor escolhendo textos seus para nos explicar o inexplicável. Por que se espantam? Bem os avisei. Não leram meus textos?
Era médico. Com certeza a morte foi para ele “O quase-nada”. Neste livro de narrativas, há um conto com tudo previsto. Leria esse conto para seus amigos sem qualquer explicação. Em “Angústia”, nada de terrível, inusitado, ou chocante. Apenas um retorno para a casa da infância. E nela o homem adulto não pode ficar muito tempo. É de noite, o vento apaga o lampião. O único desespero é por encontrar os cadernos de escola. Conseguiria? Não se tem certeza. O que se sabe é que o homem, ao salvar-se da casa em ruínas, assiste no último quarto a agonia de um monstro. Seria o monstro o guardião dos cadernos e estaria desfalecendo por tê-los perdido? Qual conteúdo habitaria esses cadernos? O homem corre em direção à porta e recebe o olhar reprovador de um menino. O menino fecha a casa com cadeados e correntes. Então,
“A casa se torce e retorce em bicos, balançando as abas na companhia das formigas. O menino percebe meu desespero e sussurra em meu ouvido – segura minha mão com cuidado e me leva para fora da casa. Saio apressado”.
Ele apenas faria a leitura. Nada de explicações sobre as formigas.
Para seu filho, tão menino ainda, a leitura seria deste trecho de “Edmundo Inventa o Mundo”:
“Olinda disse ao filho:
- Edmundo, trate de perfurar a distância que existe até o outro mundo. Como você ainda não tem prática, vai levar um tempo. Depois me conta como foi.
E ainda falou com ternura:
- Lá fora, a vida é muito bonita, depois da chuva”.
Na mesma viagem do conto, Valmor voltou para Jacutinga, a aldeia da infância, para segurar na mão do menino que corria pelo pasto ouvindo o mugido dos bezerros. Ainda bem que ele nos deixou os cadernos resgatados de antigas gavetas. Toda vez que lemos suas histórias um monstro agoniza no último quarto.
A morte é quase-nada. A vida é muito bonita, depois da chuva.
P.S – Comentário de um colega de oficina:
“Valmor, os dois textos são muito bons. Como sempre, apenas palavras precisas. Sugiro apenas cortar de “Angústia” a frase “Saio apressado.”