Circulou pelas redes sociais a foto de uma menina síria que se rende ante uma câmera fotográfica, pensando ser uma arma.
Nesse desconforto, me lembrei de uma outra menina à beira-mar:
“Papai, onde é a piscina?”
Disse a menina, quatro ou cinco anos, enquanto a família tirava do carro cadeira e guarda-sol, e a tia lhe passava protetor solar, e a vó teimando em ir de calça comprida. A trinta metros estava o mar da Praia de Ingleses.
O que há de melhor nos pequenos é o exercício da esperança. E na Páscoa, a esperança é sempre a mensagem mais forte. Gosto mais de Páscoa que de Natal. O Natal tem um clima propício para a falsidade, obrigação de dar presentes para familiares de quem não gostamos, ou fazer caridade para o porteiro do prédio e a empregada doméstica. Ninguém consegue fugir do constrangimento de colaborar com o Natal dos papeleiros ou dos garis, ou arrecadar dinheiro para uma creche. Mesmo quem nunca foi solidário se vê obrigado, de uma hora para outra, a ter bom coração. Nada pior que coação à bondade.
A Páscoa é uma festa depois da dor, do jejum, da penitência. Então superamos tudo e devoramos quilos e quilos de chocolate. Mas nessa transição, descobrimos um homem metido a Deus, ou um Deus metido a homem que, embora com medo da morte, a enfrenta.
Esta menina síria nos provoca a pedir perdão. Como a menina à beira-mar, ela não tem noção de que o mar seja mais do que uma piscina muito grande. É possível que a menina síria não imagine que os homens possam tirar fotos de outros. Em sua inocência, ela pensa que o que existe é apenas a guerra. E se rende.
Qualquer rendição é um fracasso. E quando é de uma criança não fracassa apenas ela, mas todos nós. Nos rendemos à nossa estupidez que promove a guerra, nos redemos à nossa incapacidade de salvar a paz, nos rendemos à idiota ideia de que é possível haver vencedores numa guerra onde morrem crianças.
Crendo ou não na morte e ressurreição de Jesus, nessa ideia cristã, está a metáfora da não rendição. Se não há rendição à morte, temos esperança de que todas as outras rendições serão falsas. Inclusive a desta criança.
Não apenas a rendição é falsa. Acho que a foto também deve ser falsa. Deve ter sido feita num momento em que a menina apenas se espreguiçava, depois de brincar de castelo de areia no deserto. Ela deixou seu baldinho no chão e levantou as mãos. Ou, quem sabe, se espichou muito paga alcançar alguma estrela.
A menina da Praia de Ingleses toma seu baldinho, pega na mão do pai, e segue para a beira-mar pela primeira vez. E disse parafraseando uma história de Santo Agostinho: “Papai, essa piscina não cabe no meu balde.”
A rendição de uma criança à uma máquina fotográfica, pensando ser uma arma. A não rendição de Jesus diante da morte. A idiotice humana. O mar de tristezas do mundo. Nada disso cabe no balde de minha compreensão. Mas é Páscoa. E preciso de algum motivo para comer chocolate.