OPINIÃO

Criminalizar ou não criminalizar, eis a questão

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Diante do crescimento no número de artigos científicos retratados sob o manto da alegada conduta científica inadequada, tem avançado o debate sobre a necessidade de criminalização ou não desse comportamento dos cientistas. Afinal, conduta inadequada nesse caso é um mero eufemismo para atenuar o que se poderia chamar de fraude no tocante a fabricação e falsificação de dados, além do plágio; que, mesmo havendo outras modalidades, são dominantes entre as práticas enquadráveis na categoria de inadequadas nos meios acadêmicos. Revistas que gozam de grande prestígio internacionalmente, como The Lancet, Science, Nature, PNS, etc. não tem passado incólumes a esse mal dos novos tempos, pois, segundo alegam os defensores da criminalização, em não sendo essa uma conduta tipificada criminalmente, em época de moral duvidosa, a suposta “recompensa”, em caso de êxito, tem se mostrado mais tentadora que os prejuízos frente aos riscos corridos; uma vez que processos criminais por fraude científica são raros.

Há casos de fraudes científicas que tem consequências sociais e econômicas grandes. E nesse tipo de situação, mesmo entendendo que há uma gradiente de conduta inadequada e da dificuldade de diferenciação entre fraude e erro ou interpretação equivocada de resultados, uma vez que a infalibilidade humana deve ser descartada, há quem defenda a criminalização, adicionalmente à retratação do artigo publicado, como necessária. Especialmente, quando a fraude deliberada foi prevalecente.

Um dos casos mais rumorosos de retratação de um artigo científico, não sem consequências diga-se, foi o a suspeita de fraude e manipulação de dados por Andrew Wakefield e colaboradores do Royal Free Hospital em Londres, publicado na prestimosa revista The Lancet, em 1998, pelo alvoroço que causou ao relacionar a vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e autismo. Os danos que esse artigo fraudulento causou foram enormes, em termos de saúde pública, uma vez que prejudicou campanhas de vacinação no mundo todo, pela insegurança de alguns profissionais da área médica e o temor dos pais em vacinar seus filhos. Inclusive, a negativa do então primeiro ministro da Inglaterra, Tony Blair, em responder a uma pergunta de um jornalista, em dezembro de 2001, se o seu filho recém-nascido, Leo Blair, havia recebido essa vacina, ajudou a difundir o pânico. O artigo foi retratado por The Lancet, em 2010, depois de 12 anos de muito debate, investigações paralelas, pais com sentimentos de culpa por terem vacinados os filhos e com isso condenando-os ao autismo; em resumo, espalhado dúvidas e incertezas que muita gente comunga até hoje sobre essa suposta relação entre o autismo e a vacina tríplice viral.

Havia, por trás desse artigo de Andrew Wakefield e colaboradores, conflito de interesses (inferir que vacinas isoladas eram mais seguras que a tríplice) e falta de aprovação pelo comitê de ética para os testes que foram realizados nas 12 crianças acompanhadas no estudo, impingindo-lhes sofrimento pela realização de colonoscopias e punções para retirada de líquido na coluna cervical, como revelou, em 2004, a investigação jornalística realizada por Brian Deer, do The Sunday Times.

Entre os que são contra a criminalização da chamada conduta científica inadequada, sobressai-se o argumento de que a confiança deve ser o centro de qualquer empreendimento humano; e especialmente na prática científica. Quando se instala uma crise de confiança, como a que vivemos atualmente, que pode ser medida pelo crescimento dos instrumentos jurídicos contratuais, declarações de cedência de direitos e de uso de imagem, etc. nos meios acadêmicos, os indícios são fortes de que algo vai mal. A presunção de má-fé não pode se sobrepor a de boa-fé, como algumas mentes doentias alvoroçam-se em defender. Felizmente, há alternativas além de a simples discussão criminalizar ou não criminalizar.

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