OPINIÃO

Galileu, Descartes e Eu

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Antes que pareça demasiada a pretensão do colunista e algum leitor possa concluir que o escriba, ao se imiscuir entre dois gigantes do pensamento filosófico universal, perdeu o senso do ridículo (ou o juízo), apresso-me em esclarecer. Qualquer alusão ao título dessa coluna deve ser entendida com base no conteúdo de um e-mail que recebi, na véspera do Natal passado, desde Córdoba/Espanha, enviado pelo professor Antonio Hidalgo Pedraza, perguntando se eu era o autor do livro “Galileu é meu pesadelo”. Com a resposta afirmativa, foi esclarecida a intenção do professor Hidaldo, que era enviar o livro que ele havia recém publicado na Espanha, “El Caballo de Troya de Descartes: La Duda Metódica y el Secreto del Genio Maligno”, para eu apreciar a tese, nem sempre perceptível ou assumida por muita gente, que ele defendia na obra, tratando da influência de Galileu sobre Descartes, no que tange à relação entre a dúvida metódica e as figuras de um Deus enganador ou de um Gênio maligno.

Foi a dúvida metódica cartesiana, ao questionar o pensamento escolástico-aristotélico, que nos conduziu à filosofia do sujeito pensante (ego cogito). E foi por duvidar dos cálculos dos geógrafos helenistas e medievais que Colombo pode achar a América, por exemplo. Assim, quer seja na ciência, no mundo dos negócios ou no dia a dia de qualquer um de nós, temos que duvidar dos limites das certezas humanas estabelecidas (ou que herdamos pela educação que recebemos) para que possamos aventurar-nos em busca do novo (que não é necessariamente melhor do que já temos). Essa foi, na minha visão, a grande contribuição deixada por René Descartes, ao nos ensinar a por em dúvida/cheque a visão de mundo herdada do passado. Pela dúvida metódica de Descartes, há que se começar duvidando de tudo, na mais radical crítica que podemos submeter a nossa razão.

René Descartes não era muito adepto do reconhecimento das contribuições e influências de outros autores sobre a sua obra, nem dos pensadores do passado e nem dos seus contemporâneos. Não foi diferente com Galileu, cuja condenação pela Inquisição (1633), até pela proximidade que Descartes tinha com os jesuítas, e cujas obras “Diálogos sobre os dois grandes sistemas” (1632) e “Duas novas ciências” (1638), ainda que ele tivesse negado que conhecia, há evidências em documentos e correspondência, levantadas pelo professor Hidalgo, que demostram o contrário. Sim, afirma taxativamente o professor Hidalgo, Descartes conhecia a condenação pelos tribunais da Inquisição e não ignorava a obra de Galileu. Então, por que o homem que se esmerou em “andar mascarado pela vida” sempre negou isso?

Não foi sem razão que Descartes, prudentemente, tratou de evitar qualquer enfrentamento com as autoridades eclesiásticas. A tese do professor Hidalgo é que René Descartes usou uma tática equivalente ao famoso “cavalo de Troia” para questionar o princípio, então dominante e defendido pela Igreja, da onipotência infinita de Deus, e assim poder construir um conhecimento estritamente científico do mundo, que pelo racionalismo cartesiano significa um conhecimento baseado em verdades inquestionáveis e demonstráveis. Afinal, como afrontar um Deus enganador que podia tudo, inclusive fazer que não houvesse acontecido algo que já havia acontecido no tempo ou que algo verdadeiro se transformasse em falso?
Então eis que, o verdadeiro Cavalo de Troia de Descartes, deixado como “presente aos inquisidores”, para evitar equívocos de fé, driblando os escolásticos, foi a substituição, no final do desenvolvimento do processo da dúvida metódica, da figura de um Deus enganador pela figura de um Gênio maligno. Afinal, a pretensão de Descartes foi escapar da submissão da razão aos condicionantes ideológicos da tradição medieval, que deram causa à condenação de Galileu Galilei.

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