OPINIÃO

O último sorriso de Beatriz

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Depois de Mona Lisa, talvez seja Beatriz a dona do mais enigmático sorriso, no mundo das artes. É evidente que estou me referindo a Beatriz, filha de Folco Portinari, e a patética passagem dos versos que compõem o canto XXXI do Paraíso, na memorável Divina Comédia,de Dante Alighieri. Mesmo famoso, foram poucos que prestaram a devida atenção nesse canto. A exceção de intelectuais da estatura de um Jorge Luis Borges que, inclusive, devotou a eles um estudo especial, La ultima sonrisa de Beatriz, incluído no livro Nueve ensayos dantescos, organizado em 1982, e que, não por coincidência, serve de título para essa coluna.

Quem não lembra que, no alto do monte do Purgatório, Dante perde Virgílio e passa a ser guiado por Beatriz, cuja formosura só aumenta a cada novo céu que tocam, percorrendo esfera após esfera.  Aos seus pés, as estrelas fixas, e sobre elas o empíreo (a infinita região de luz). Anjos e a rosa paradisíaca formada pelas almas dos justos complementam o cenário. Eis que, de pronto, Dante se vê sozinho (junto dele apenas um ancião. Trata-se de São Bernardo que, a partir daí, vai ser o seu guia até postar o peregrino à face de Deus). Desesperado, avista Beatriz no alto, em um dos círculos da rosa. E é aí que se dá a celebre passagem da última olhada e do último sorriso de Beatriz para Dante. Interpretações as mais variadas possíveis. Incluindo as daqueles que acreditam que Virgílio representa a razão, usada para alcançar a fé, e a fé propriamente dita é simbolizada por Beatriz, que serve de instrumento para Dante alcançar a divindade. Aquele sorriso de Beatriz seria não mais que um símbolo de aquiescência.

Jorge Luis Borges considera que o lado trágico da cena descrita pertence menos à obra que ao autor da obra. Ou seja: menos a Dante, protagonista da história, e mais a Dante, escritor e poeta (o homem). Há, inclusive, quem pense que Dante, ao inventar o Paraíso, tinha a intenção de criar um reino para sua doce e amada Beatriz. O que permite esse tipo de conjetura é a famosa passagem de conclusão de Vita nuova, escrito em 1292, em que Dante promete dizer de Beatriz “o que jamais se disse de mulher alguma”. E a promessa teria sido cumprida, quando escreveu a sua Comédia, rotulada, a partir do século 16, de Divina.

Voltando à cena do último sorriso de Beatriz: Dante, com Beatriz a seu lado, está no empíreo. Sobre eles a rosa dos justos; e Beatriz some. Dante se desespera e grita. O ancião a seu lado indica um dos círculos. Lá está Beatriz aureolada. Ela lhe acena e sorri. Era a mesma Bice que conhecera aos nove anos, em uma festa na casa de Folco Portinari. A mesma Beatriz que viu nove anos depois e uma vez lhe negou saudação. A jovem que se casou com o banqueiro Simone dei Bardi. A Beatriz que morrera aos 24 anos. A mulher a quem Dante amara platonicamente. É essa mesma Beatriz que lhe olha um instante e sorri, para depois se voltar à eterna fonte de luz do empíreo.

A cena foi imaginada por Dante. Mas, para quem a lê, parece muito real. Primeiro a vida e depois a morte tiraram Beatriz de Dante. Borges supõe que Dante criou a cena para imaginar que estava com ela. Desgraçadamente para ele, ficou para os leitores a sensação de que o encontro foi imaginário e lhe proporcionou mais momentos de horror que de prazer.

Também não faltam os que consideram que nunca houve uma Beatriz-mulher e musa de Dante. Era apenas um nome que, na tenra idade, impressionara o poeta florentino. Foi um simbolismo usado por ele para dirigir-se à Igreja ou à Filosofia.

Dante Alighieri, “o adúltero da literatura medieval”, não cita a mulher e os três filhos uma só vez na sua obra. No entanto, na Divina Comédia, Beatriz (uma mulher casada) tem seu nome referenciado 64 vezes (além de indicações do tipo “a minha dama” e “aquela que”), enquanto Cristo surge 40 vezes, Virgílio 31 vezes e Maria 22 vezes. Somente o nome de Deus supera o de Beatriz. De fato, parece que Dante cumpriu a promessa de dizer a Beatriz o que jamais se disse de mulher alguma.

 

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