OPINIÃO

A tradução segundo Borges

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Nas memoráveis conferências que Jorge Luis Borges proferiu, em 1971, na Universidade de Columbia/EUA, sobre a formação de escritores, uma delas, especificamente, tratou do oficio da tradução. A transcrição das falas desses encontros, que contaram com a participação de professores e estudantes do programa de escrita da Universidade de Columbia, deu origem ao livro Borges on Writing, publicado em 1973 nos EUA, com edição de Norman Thomas di Giovanni, Daniel Halpern e Frank MacShane, cuja primeira versão para o espanhol veio a público em 2014, pela tradução de Julián E. Ezquerra (Buenos Aires: Sudamericana, 2014. 176p.).

Na visão de Borges, há duas maneiras de traduzir: uma literal e outra que faz uma espécie de recriação do original. E exemplifica com o caso do livro das das mil e uma noites. O orientalista Jean Antoine Galland quando verteu esse título do árabe para o francês o fez como As Mil e uma Noites (Les Mille et une Nuits), que, alias, frise-se, até bem pouco tempo, as versões dessa obra que eram lidas no Brasil tinham como origem a tradução francesa de Galland passada para o português (a 1ª tradução direta do árabe para o português, de Mamede Mustafa Jarouche, surgiu em 2005). Por sua vez, o Capitão Burton, na sua famosa versão do árabe para o inglês, optou por traduzir o título literalmente, dando origem ao clássico O Livro das Mil Noites e uma Noite (The Book of the Thousand Nights and a Night). O titulo dado por Burton, para os nativos das línguas inglesa e latinas, surpreende pela singularidade, adquirindo certa beleza por soar estranho aos nossos ouvidos, o que não acontece com os falantes do árabe, pois, literalmente, é entendido assim.

Borges não descarta que a tradução, pela recriação, pode ser uma possibilidade de aperfeiçoamento do original. Um limite muito tênue de atuação do tradutor, que não raro é causa de atritos com editores e autores /ou herdeiros de obras, sob a alegada modificação de sentido do original, independentemente do direto de parafrasear o que foi feito. O exemplo de recriação, com aperfeiçoamento, pela tradução, é o caso da bem conhecida sentença latina sobre ciência: Ars longa, vita brevis. A versão que Chaucer fez para o inglês não foi simplesmente a literal “Art long, life short” (Arte longa, vida curta), mas sim a opcional “The life so short, the craft so long to learn”, algo como “A vida tão breve, o ofício de aprender tão longo” , que tem uma espécie de poesia e musicalidade que não encontramos no original. A transliteração com dicionário é vista como uma forma inferior de tradução.

A dificuldade de tradução de um diálogo, que pode aparentar certa facilidade, só não é maior que a de um poema. Um fragmento poético pode ser impossível de traduzir. Estamos falando em sentimentos e não em rimas, que não é poesia por ser deveras previsível. E sem esquecer que a prosa de uma época é uma reflexão daquela época, fato que exige do tradutor mais que o mero domínio de línguas. Entender o texto e a intenção do autor é obrigação de quem traduz profissionalmente. O pior de uma tradução não é traduzir mal algumas palavras, mas sim traduzir mal o tom e a voz do autor; segundo J. L. Borges.

O grande dilema do tradutor é como traduzir algo que foi originalmente mal escrito. Se vier a traduzir tal qual consta no original pode ser acusado de ter feito uma má tradução. Indiscutivelmente, coisas mal escritas não podem ser traduzidas literalmente. Eis a razão, dizem, porque as melhores traduções, na maioria das vezes, apenas tocam no original.

Rendemos, pois, nosso tributo aos tradutores. Sem eles, eu e, talvez, você leitor nunca teríamos tido acesso aos cânones da literatura russa e aos clássicos das línguas germânicas. E, sem Jean Antoine Galland, quem sabe, também não conheceríamos a história de “Aladim e a lâmpada maravilhosa”, que, segundo alguns estudiosos, não existia nos originais, podendo ter sido uma espécie de licenciosidade e criação do próprio Galland (fato não confirmado).

 

 

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