OPINIÃO

Memórias de Júlio (Marguerite Yourcenar Anunciação)

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Às vezes escrevo crônicas de cunho político ou críticas. Não reflete o Jorge otimista, positivo e brincalhão do dia-a-dia. Então, meus amigos mais chegados reclamam. Dizem: fala das coisas da nossa juventude, daquelas particularidades que ficaram desfocadas ao longo do tempo, daquilo que apagou das nossas retinas e que o cronista guardou no seu valioso caderninho. Veja, caro colega Júlio Teixeira que quando fico enchendo o saco para que escreva tua rica história e convivência não é por desejo pessoal e sim por necessidade documental. A história deve ser contada e escrita por quem tem ampla sensibilidade e ressonâncias humanas, que é o teu caso.

Ano 1976, quarta, quase 17 horas, a colega de primeiro ano da faculdade Rosana Stefani chega com seu fusca para aula de anatomia com os professores Tissot e Mentz. Estaciona e o rádio tocava Guilherme Arantes (Meu Mundo e Nada Mais). José Ari Ferraz, João Vanni, Lúcia Bonamigo, Simone Chedid, José Emílio, Jairo Guarienti e eu comentávamos o boato sobre a morte de Ferrugem um performático ator de comerciais de TV. Dia desses vi Rosana no hospital e sorrimos; dia desses vi um comercial na TV e minha mulher perguntou: lembra do Ferrugem? Como não lembrar, como poderia esquecer?

Minha casa era na travessa Cel Sampaio, atual Arcildo Leidens, em frente ao cemitério da Vera Cruz. Eu aguardava Jairo Guarienti e pernávamos até o Anatômico, atrás do Hospital Municipal. Eram mais de dois quilômetros de caminhada. No caminho anexávamos Joubert Brendler (o único de nós que havia morado no exterior, Suécia) e Vanni. Jairo e eu não tínhamos grana para o ônibus. Minha casa tinha uma TV PB Colorado RQ. Nas segundas, às 23 horas, assistia Baretta (Robert Blake) seriado policial em que Baretta se travestia de padre, mendigo ou mulher para capturar delinquentes. Às terças, Kojak (Telly Savallas) chupando pirulitos e chamando a todos de neném. Élio Bosa, ao ter os cabelos tosados por ocasião dos trotes dos bixos tinham ficado à semelhança do ator e por isso ganhara esse apelido. Quartas era o dia de Columbo (Peter Falk). Minha mãe levantava e com a candura de todas as mães perguntava: não é muito tarde filho? Amanhã tens aulas. Sim, mãe, já vou deitar.

Dia desses estava, ao acaso, ouvindo um bate-papo de médicos jovens que se queixavam dos familiares dos pacientes. Fiquei com a triste impressão que a medicina está ficando absolutamente técnica ao invés da humanidade característica de outros tempos. Hoje o paciente não tem nome, tem prontuário. Houve um tempo, talvez somente nas nossas cabeças, em que as coisas, todas elas, eram feitas com mais carinho, com mais afinco, em que medicina era vocação. Tem gente que não tem jeito para cuidar de gente. Talvez, seja por isso também, caro Júlio Teixeira, que aguardamos teus relatos que mais que relatos irão, por certo, enriquecer nossas vidas.

Em tempo, Marguerite Yourcenar, premiada escritora francesa, publicou Memórias de Adriano em 1951. Trata-se de cartas do imperador Adriano a seu filho adotivo Marco Aurélio que viria a ser imperador romano. Tenho-o a longo tempo e ainda não terminei de lê-lo. Farei isso antes de morrer porque é bem provável que após a minha morte não conseguirei fazê-lo.

 

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