Roger Chartier, intelectual francês que goza de reconhecimento internacional pelos seus trabalhos sobre a história do livro e da leitura, foi um dos convidados especiais do 13º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural, que aconteceu na Universidade de Passo Fundo, entre os dias 28 de setembro e 1º de outubro de 2015.
Entre as obras de Roger Chartier, eu, particularmente, aprecio a coletânea de ensaios encapsulada no livro “A mão do autor e a mente do editor”. E destaco isso, inclusive, porque nesse livro pode ser encontrada boa parte das falas que Chartier usou na “Conferência a duas vozes: Novas tecnologias - ler e escrever, aprender e apagar”, que ele proferiu no aludido evento (na noite do dia 30 de setembro), em dueto com Anne-Marie Chartier.
Foi em Kant, na sua “A metafísica dos costumes”, que Roger Chartier se valeu para definir a natureza dual do livro: objeto (matéria) e discurso (texto). Eis a essência do que, ainda hoje, a maioria de nós entende por livro: um objeto material que pertence à pessoa que o adquiriu (ou ganhou de presente) e um discurso (intangível) endereçado ao público, que permanece propriedade do seu autor (propriedade intelectual/direito autoral) e que só pode ser posto em circulação por aqueles designados pelo autor (cessão do direito de copyright).
A erudição de Roger Chartier - vasta, mas não pedante - enriqueceu culturalmente os que tiveram a oportunidade de ler os seus ensaios ou ouvir as suas conferências. Sobre o livro impresso, tal qual conhecemos hoje (feito de folhas e páginas), um protótipo do século 18 que reina até os nossos dias, nos permitiu saber que, diferentemente do que muitos imaginam, a sua origem não remonta à invenção da prensa de Gutenberg e os tipos móveis, mas sim aos primeiros séculos da era cristã, quando o códice, ao substituir o rolo, promoveu uma verdadeira revolução na leitura e no armazenamento de informações. Gutenberg e sua invenção, no primeiro momento, permitiram a produção maciça e a disseminação ampla de objetos impressos que não eram necessariamente livros.
Outra particularidade, nem sempre perceptível por nós leitores, que foi destacada por Roger Chartier, é a materialização do livro na forma da palavra escrita - manuscrita, impressa e eletrônica - e o caminho que percorria até chegar aos leitores do passado e como ainda chega até os leitores contemporâneos. É um processo de elevada complexidade que, como bem frisou Chartier, sempre envolveu, em maior ou menor grau, a mão do autor e a mente do editor.
Nos rastros do processo editorial, há muitas pessoas lidando com o material original antes de esse ganhar a forma final de livro; no passado e ainda hoje. Houve o reinado dos escribas que transcreviam a primeira versão dos manuscritos do autor, os censores que autorizavam a publicação, os editores que se interessavam por publicar, os revisores que preparavam e corrigiam o texto, os copistas (na era dos manuscritos) que produziam as cópias limpas das obras e depois os tipógrafos que compunham as páginas (colocando pontuação e acentos) para a impressão. Enfim, uma longa história, cuja arqueologia não nos permite ignorar que, mesmo no universo editorial contemporâneo, nada muito diferente acontece com os livros impressos (ou digitais no formato e-book), cujos textos são redigidos e corrigidos pelos autores (não raro com a ajuda do editor de texto em uso) na tela de um computador pessoal. Em resumo, é impossível não reconhecer a dimensão coletiva, desde sempre, em qualquer produção textual que mereça ser chamada de livro.
Os novos suportes digitais estão criando uma nova maneira de leitura, segmentada e descontínua, e uma nova forma de construção e de publicação dos discursos textuais que chamamos de livros. No que isso vai dar? Roger Chartier, por entender que os historiadores em geral são maus profetas, não fez nenhum vaticínio. Uma coisa é bem provável: o aumento, simbolicamente (uma vez que digitais), da pilha dos livros inúteis.
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