OPINIÃO

Desconstruindo mitos

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Há (ou havia) a crença que os usuários contumazes de “palavrões” agem assim por uma mera questão de pobreza de vocabulário. Lamento pela desilusão, mas esse é mais um mito que foi descontruído pelo trabalho relativamente recente dos psicólogos Kristin L. Jay e Timothy B. Jay, publicado na revista Language Sciences (v. 52, p. 251-259, 2015). E na categoria “palavrão” entenda-se uma gama variada de vocábulos que são rotulados de baixo calão uma vez que, quando tomados literalmente e fora dos contextos que foram originalmente ditos, denotam insultos preconceituosos com conotações variadas sobre orientação sexual, discriminação de gênero ou racial, escatologia, blasfêmia, obscenidades ou simplesmente grosserias. Inquestionavelmente, apesar de muitos torcerem o nariz para esse gosto duvidoso, o uso de “palavrões” como recurso de linguagem, quando dissociado de preconceitos frise-se, é lexicalmente legitimo, uma vez que se aplica para uma variedade de propósitos e obedece a regras sintáticas e semânticas. O uso de “palavrões” requer conhecimento linguístico apurado, uma vez que essas expressões carregam conotações e significados emocionais expressivos, que deixam o usuário numa posição bastante vulnerável, especialmente em exposições públicas.

Kristin L. Jay e Timothy B. Jay em exaustivo estudo de três experimentos, que envolveu a participação de 218 pessoas, obedecendo a princípios éticos estabelecidos por normas da Associação Americana de Psicologia, testaram as relações existentes, tanto na fala quanto na escrita, entre o uso de “palavrões”, a riqueza verbal e alguns traços individuais de personalidade. A crença popular de que o uso de “palavrões” está associado com pobreza de vocabulário não resistiu aos testes. Fluência vocabular é fluência vocabular, independentemente do tipo de palavra, “palavrão” ou não. Os indivíduos que conseguiram, nos testes escritos e falados, citar um maior número de “palavrões” também alcançaram melhor desempenho em listar nomes de animais (o exemplo usado no estudo). Não foi encontrada associação entre o uso de palavrões e gênero (não há diferenças entre homens e mulheres). Todavia, houve associação entre uso de “palavrões” e os traços de personalidade, estando positivamente correlacionado com alguns (neurose, por exemplo) e negativamente com outros (conscientização, por exemplo).

No aludido estudo de Kristin L. Jay e Timothy B. Jay, 10 “palavrões”, concentraram 57% das 1396 citações passiveis dessa caracterização em inglês. Eis os “top 10”, no original em inglês (sem tradução, pois significam exatamente o que você está pensando): fuck, shit, bitch, cunt, asshole, ass, damm, motherfucker, slut e whore. Caso os testes tivessem sido feitos com nativos de língua portuguesa, acredito que a ordem das citações não teria sido muito diferente dessa (pelo menos nas três primeiras colocações), demonstrando certa universalidade linguística no uso de “palavrões”.

O psiquiatra inglês Anthony Daniels, que como ensaísta assina com o pseudônimo Theodore Dalrymple, tem uma visão algo diferente sobre o uso de palavrões e seus reflexos culturais. Em ensaio de 2003, entende que a autorização dada à publicação sem censura do livro “O amante de Lady Chatterley”, de D.H. Lawrence, em 1960, na Grã-Bretanha, pelo uso repetitivo e incessante que esse autor fazia do termo “fuck”, foi a responsável pelo inicio da espiral decadente da cultura britânica. Outros entendem que D. H. Lawrence, em “O amante de Lady Chatterley”, conseguiu, de alguma forma, fazer o termo “fuck” soar menos obsceno e mais refinado aos britânicos ao privá-lo de suas conotações mais sujas. Evidentemente, o Dr. Anthony Daniels não entende assim, pois inclusive se vale da famosa assertiva de Somerset Maugham, “um escritor medíocre está sempre em seu melhor, mas apenas um escritor muito ruim estará frequentemente em seus pior”, ao se referir a D.H. Lawrence.

 

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