Prende e solta. Prende e fica preso

Por que crimes semelhantes são julgados de forma distinta pela Justiça?

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No final do mês de janeiro, uma decisão judicial dividiu opiniões, gerou desconforto, críticas e muitos questionamentos. Afinal, por que crimes semelhantes têm interpretações tão distintas da Justiça? O caso em questão é de uma jovem suspeita de tráfico de drogas que obteve liberdade horas depois de ser presa preventivamente. A determinação foi assinada pelo magistrado, Luiz Christiano Aires. Para o juiz, a jovem capturada com drogas e dinheiro, após ser flagrada realizando a venda, não oferecia riscos à sociedade. Dias depois, o Ministério Público recorreu da decisão por considerar o tráfico de drogas, um delito grave, que coloca em risco a ordem pública. O caso, assim como muitos outros, foi interpretado de forma distinta entre as partes, que se basearam na mesma legislação. O Nacional ouviu diferentes opiniões a respeito do tempo e busca explicar, nesta reportagem, as diferentes correntes do Direito, além de mostrar em que situações ocorrem as prisões.
De acordo com o professor de Direito na Imed e advogado criminalista, Gabriel Ferreira dos Santos, o Direito não faz parte das ciências exatas, mas das sociais, o que permite diferentes interpretações. “É possível olhar o mesmo objeto e ter interpretações adversas sobre ele”, esclarece.
Da mesma forma o promotor criminal e professor de Direito da UPF, Álvaro Poglia, explica que a análise dos requisitos para manter uma pessoa presa ou conceder a liberdade, é individual. “As condições fáticas que são examinadas nos autos do inquérito policial, são objetivas, todavia, há um inerente espaço de subjetividade. E isso é normal em um Estado Democrático de Direito”, pontua.
Conforme Poglia, é o juiz que analisa e julga um inquérito ou processo criminal. “O que ocorre é que temos magistrados com pensamentos mais liberais e outros com uma fundamentação teórica afiliada a correntes mais punitivas. Faz parte do sistema jurídico”, completa.

Quais são as principais correntes?

–> Direito Penal do Inimigo
Essa escola aparece, especialmente, após os ataques terroristas de 2001. Em resumo, conforme o promotor Póglia, os pensadores entendem que o sujeito que é terrorista deve ser tratado como inimigo da sociedade. “Para os suspeitos de envolvimento com o terrorismo, portanto, deve haver uma diminuição do sistema de garantias”, esclarece.

–> Lei e Ordem
Essa corrente, segundo Poglia, é uma tentativa de fazer com que o direito penal cumpra uma função de controle social excedente. É uma corrente mais punitiva. “Essa escola abre um leque de possibilidades no que se refere à especificação e elaboração de tipos penais variados. O aumento gradual das penas também é uma das características”, explica.
–> Abolicionistas penais
Os pensadores do abolicionismo, ao contrário, acreditam que o direito penal só traz maiores problemas para sociedade. “Eles defendem que não há justificativa ética e jurídica para existir um sistema penal e, portanto, ele deve ser abolido”, sintetiza.
–> Garantismo Penal
“A doutrina é de Luigi Ferrajoli. Ele entende que o direito penal deve ser submetido ao direito constitucional, corretamente. Ou seja, hoje não podemos mais ler o Código Penal, senão a luz da Constituição Federal”, elucida.

 

 "O que ocorre é que temos magistrados com pensamentos mais liberais e outros com uma fundamentação teórica afiliada a correntes mais punitivas. Faz parte do sistema jurídico."
Promotor criminal, Álvaro Poglia.

 


É regra!
O artigo 5º inciso LVII da Constituição Federal Brasileira prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. “A garantia do princípio da não culpabilidade, conhecido, também, como princípio da presunção da inocência é norma constitucional e está acima das leis ordinárias”, explica Poglia.
A lei, portanto, pretende garantir os direitos do indivíduo, enquanto o mesmo não for condenado. Mas, segundo o promotor, a mesma constituição possibilita o cárcere antes mesmo de formada a culpa, caso se prove a necessidade. “Essa prisão é excepcional”, salienta.
Tanto é excepcional que o inciso LXVI do mesmo artigo, disciplina que ninguém será levado à prisão quando cabível a liberdade. “Responder um inquérito policial ou processo criminal solto, é regra. A exceção é fazermos isso com condicionamento de preso”, esclarece Santos.
Ainda de acordo com o criminalista, pouco se ouve falar dos sujeitos que foram presos preventivamente e, no final do processo, receberam um veredito de absolvição. “Se depois do julgamento forem condenados, não há problema. O tempo da prisão cautelar será descontado do tempo de condenação. Mas se for absolvido, o que a gente faz com esse período que o indivíduo ficou preso preventivamente?”, questiona.

É realmente exceção?
De acordo com a ADPF 347, o Brasil prende preventivamente muito mais do que os demais países. “Nós somos a terceira maior população carcerária do mundo. O Brasil só perde para os Estados Unidos e para China”, diz Santos. O advogado criminalista esclarece que o senso comum costuma falar em impunidade, sem levar em conta o número de pessoas que estão encarceradas. 

Somente no Rio Grande do Sul, a massa carcerária deve ultrapassar ligeiramente os 40 mil presos. Desses, 40% são presos provisórios. “Isso significa dizer que, de cada 10 detentos, quatro foram recolhidos aos presídios preventivamente”, analisa.
Para Santos, esse número deixa claro que a Constituição Federal Brasileira não está sendo cumprida. “Quando a gente coloca num presídio 40% de presos provisórios, ninguém me convence que esse número é exceção”, afirma. Da mesma forma, o promotor criminal faz uma comparação: “A jovem que foi solta logo depois da prisão por tráfico de drogas é a regra. Entretanto, existem outros 70 detentos, presos preventivamente no município pelo mesmo crime. Eles são a exceção!”, reflete.
Conforme o advogado criminalista, esse número excedente de presos provisórios existe porque os conceitos “segurança pública” e “prisão provisória” se confundem, embora não devessem. “A prisão preventiva nunca foi sinônimo, nem um braço ou suporte para segurança pública. Aumentar o número de presos provisórios não é maneira de fazer segurança pública”, salienta e completa: “A prisão preventiva, na verdade, serve para proteger o processo criminal, do ponto de vista técnico. Podemos não concordar, mas tem essa finalidade”.


A lei é para todos!
As garantias previstas na Constituição Federal Brasileira são para todos. “O mesmo que reclama que uma pessoa foi solta antes da sentença, poderá vir a cometer um crime. E, se isso acontecer, vai postular, reivindicar e invocar o princípio da não culpabilidade”, destaca Poglia.

Com dinheiro, se obtém liberdade
O delegado titular da 1ª Delegacia de Polícia, Diogo Ferreira, vale-se de três exemplos para retratar a discrepância que existe entre presos preventivos com menor condição financeira aos mais abastados. “Em 2014 tivemos duas operações de combate ao tráfico de drogas sintéticas. Todos os presos são de classe média e classe média alta e foram soltos logo em seguida. No mesmo ano, fizemos uma operação de combate ao tráfico de drogas, no bairro Cruzeiro. Todos pobres. Ficaram presos preventivamente até serem condenados, recentemente. Ainda posso citar a operação realizada em julho do ano passado, à beira trilho, com pessoas que a única renda era do tráfico, ou seja, também pobres. Eles continuam presos até hoje”, enumera.
Segundo Ferreira, essa gritante diferença entre as solturas ou decisões mantidas, ocorre porque quando se contrata um serviço e se paga caro por ele, exige-se um resultado positivo, nesse caso, um habeas corpus. “O advogado particular ‘bom’, vai monitorar os plantões para entrar com pedido de liberdade quando cair para uma câmara em que o juiz for menos rigoroso. É uma estratégia dos advogados que já tem esse conhecimento e que cobram por tal habilidade um valor que somente os mais ricos podem pagar”, explica.


‘Não dá nada’
O delegado acrescenta que as liberdades “prematuras” de ambos os grupos presos em 2014, por tráfico de drogas sintéticas, gerou a sociedade uma sensação de impunidade. “Há dois anos tínhamos um grupo de venda de drogas sintéticas que desarticulamos e outros cinco ou seis indivíduos que vendiam. Hoje tempos, no mínimo, 200 traficantes na cidade. A ideia que se formou devido às solturas, é que vender sintéticas em Passo Fundo ‘não dá nada’”, lamenta.
De acordo com Ferreira, o jovem coloca o custo/benefício em uma balança e assimila que a venda de ecstasy ou LSD não gera risco a integridade, devido ao local da venda, somado ao lucro fácil e ao tempo reduzido de prisão. “É o combustível perfeito para ele traficar”, afirma.

Legislação obsoleta
Imagine-se viajando de Passo Fundo até Porto Alegre, hoje, com um veículo da década de 1940, em que o velocímetro atinge, no máximo, 45 quilômetros por hora. Já sabemos: não aguentaria a viagem. A metáfora é utilizada pelo professor de Direito na Imed e advogado criminalista, Gabriel Ferreira dos Santos, para explicar sobre a obsolescência do Código de Processo Penal, que foi criado há 75 anos e ainda é utilizado, sem grandes alterações, como parâmetro das prisões cautelares. “Ele está ultrapassado”, completa.

“As razões pelas quais as pessoas podem ficar presas preventivamente, por vezes, não são claras.”
Advogado criminalista, Gabriel Ferreira Santos


As decisões judiciais e os recursos baseiam-se em uma legislação considerada, segundo o criminalista, antiquada. “As razões pelas quais as pessoas podem ficar presas preventivamente, por vezes, não são claras”, fala. E, é justamente por não serem evidentes, segundo o advogado, que elas permitem aos que consultam o código, diferentes interpretações.
Santos explica, em particular, a amplitude conceitual do principal fundamento utilizado para solicitar uma prisão preventiva. “Nós temos no Brasil, basicamente, quatro fundamentos, ou seja, motivos, para deixar as pessoas presas enquanto respondem o processo. O mais utilizado, é a garantia da ordem pública”, diz.
Ao fundamento está atrelado um grande problema: não há uma definição. “Onde está escrito o que é garantia da ordem pública? Em lugar nenhum!”, afirma. Se não há uma descrição em relação ao fundamento, cabe aos diferentes julgados encontrá-las.
O promotor criminal, Álvaro Poglia, reitera. “A lei fala em ordem pública, mas há um espaço conceitual bastante amplo. Um determinado juiz poderá ter sua conceituação sobre esse requisito mais fechada, reduzida. Outro poderá ter o conceito mais aberto, amplo. É pessoal. Quem não gosta da decisão, recorre. Tanto a acusação, quanto a defesa. É isso que legitima o processo criminal. O que não podemos aceitar é a antecipação de pena como prisão preventiva” assegura.

Vai esperar acontecer para agir?
“Do ponto de vista do direito penal e do processo penal, sim!”, responde o criminalista, ao ser questionado. Utilizando-se de outra metáfora, Santos explica o papel do direito penal: “Ele é o produto de limpeza que existe para limpar o leite depois que ele ferveu e derramou no fogão por algum descuido. A gente não pinga o componente no leite para que ele não derrame. Usamos ele depois, para limpar a sujeita”, explica.
De acordo com o criminalista, prender um grupo por determinado delito, não é suficiente para resolver um problema de segurança pública. “Quando uma padaria fecha em determinado bairro, outra pessoa entende aquilo como uma oportunidade: vou abrir uma padaria onde a outra fechou. É exatamente o que acontece com uma boca de fumo, pois, o tráfico de drogas é, para o traficante, um negócio. Gera lucro”, exemplifica.
Para o advogado, o direito penal não tem força suficiente para resolver os problemas da criminalidade sozinho. O promotor Póglia faz a mesma leitura sobre o direito penal. “Ele não vai resolver os problemas sociais, porque não é produto de resolução dos problemas sociais”, certifica.
Para Poglia, a grande mídia, considerada formadora de opiniões, pode contribuir ou acentuar os problemas criminais da sociedade, ao oferecer programas educativos e informativos, segundo o que está previsto na lei, ou, ao proporcionar imagens de agressão, tráfico e criminalidade, diariamente.
Já conforme o criminalista, a responsabilidade cabe, principalmente, ao cidadão. “Aquele que se autodenomina cidadão de bem e que clama por segurança, também deve contribuir. E, ele só faz isso, quando não se corrompe, quando não faz troca de votos para se beneficiar individualmente e quando ele escolhe direito o seu representante”, conclui.

 

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