OPINIÃO

Sabiá

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Olho o tempo de temperatura agradável nessa manhã de abril. Parece-me enxergar minha mãe com uma vassoura de piaçava limpando a calçada não calçada de nossa casa. A Rádio Cruz Alta roda a música do momento – A Banda, de autoria de um garoto bonito de olhos azuis chamado Chico Buarque de Hollanda. Eu recém havia iniciado meus estudos e minha mãe me enfeitava, a roupa alinhada, desodorante após um banho meio demorado para meu gosto, lápis de cor, caderno de ortografia e de desenho. Prestar atenção, nunca perturbar a professora, fazer o tema, chegar cedo, aprender a cantar o Hino Nacional. A banda, a banda que eu mais gostava era a banda do 17, banda da infantaria e eu chegava a adivinhar qual seria a sequência executada. Ah, eu seria militar como meu pai, como meus tios Luís e Nilson. Luís (Tio Gito), que tinha uma bicicleta como seu maior valor material, uma Monark aro 28, bicicleta que ele enfeitava com bandeirinhas verde-amarelas à época dos desfiles, carregava-me para cá e lá; seria militar como meu padrinho Sadi; militar como alguns jogadores do Guarani e Nacional. Meu pai, recém promovido a sargento, tinha, no entanto, outros planos, velados é verdade, não manifestados porque sempre me deu a proposição da escolha. Ele queria que eu fosse doutor e, se possível, doutor em medicina. Meu pai nascera na época em que o analfabetismo era do tamanho do país e almejava algo maior para seus filhos. Um pai deve abrir estradas para seus filhos, deve apontar caminhos e dar exemplos, deve aparelhar os filhos para seus destinos, dizia-me sem falar. Minha mãe, bem minha mãe derramava sobre todos, inclusive para seu infiel marido, toneladas de carinho e humanidade.
Olho o dia de temperatura agradável essa manhã enquanto pela sacada aberta do apartamento abro bem meus ouvidos para a sinfonia dos sabiás. Pergunto-me de forma absolutamente absurda: será que são os mesmos sabiás de Cruz Alta? Olha aí o passado tão presente, visito-o regularmente como repositório de energias e esperanças. Às vezes, sorrateiro, nas tardes de domingo encaminho-me à antiga granja do quartel, ali na saída para Porto Alegre, logo adiante do Champagnat. Estaciono e fico a olhar para aquelas árvores e gramado abandonados. Ali percebo-me correndo com meus irmãos, acampando com meus colegas de Cenav, passando as tardes com meus amigos Tito Bassani, Eduardo Azambuja, Antonio João e Henry Ruschel. Que seríamos no futuro? Amigos, parceiros, felizes. Vejo meus pais e seus amigos; gol do Grêmio, gol de Tarciso; gol do Inter, Figueroa. O tempo passa, os sabiás se renovam, nascem e morrem. Mas seu encantador assovio, melodiosa entonação a encantar os ouvidos sensíveis ou não permanece incrivelmente harmonioso. Talvez, quando morrer e se for traído e for vítima de um velório, coisa mais sem sentido que possa haver, gostaria que colocassem o canto do sabiá para alegrar meu espírito titubeante entre deixar quem amo para viver a eternidade de quem muito amei e ainda amo. Ao sabiá, acrescentaria a música Summer Place, na orquestra de Percy Faith e tema de Midnight Cowboy, na gaita de boca de John Barry. Assim, no encanto dos sonhos e pela magia da suavidade poderia fazer a travessia assoviando, tal qual um sabiá.
PS - Luís Carlos Schneider é um romântico como eu, entende muito dos grandes hits que marcaram nossa geração. Essa crônica é para ti.

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