Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é sociólogo, coordenador do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUCRS e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ele esteve em Passo Fundo na semana passada convidado para palestrar no Congresso Internacional de Prevenção da Violência, realizado paralelamente ao 10º Congresso Médico de Passo Fundo. Na oportunidade, ele conversou com a reportagem de O Nacional sobre tópicos relativos à segurança pública.
ON - Qual sua avaliação sobre a segurança pública no Brasil?
A segurança pública é, hoje, uma grande preocupação dos brasileiros. Nesses quase 30 anos de democracia, nós não conseguimos enfrentar o problema. Faltam reformas estruturais, falta a integração de esforços da União, estados e municípios, a participação da sociedade civil. Ou seja, é uma área que avançou muito pouco. Nesse período, outras áreas avançaram, mas essa não. Ainda assim, houve momentos que as coisas andaram melhor. O Pronasci, no segundo governo Lula, foi um momento em que havia recursos da União, participação dos municípios, presença da polícia. Ali foi um momento em que houve queda das taxas gerais de homicídios no Brasil. Mas de lá para cá as coisas pioraram. O Pronasci foi descontinuado e o governo federal parou de ter uma atuação maior nessa área.
ON - E aqui no Estado?
Aqui no Rio Grande do Sul, esse último um ano e meio foi muito difícil. Desde que o governo Sartori assumiu [em janeiro de 2015], ele colocou ao público a questão da crise financeira do Estado como justificativa para corte de verbas em todas as áreas. Então, o que tem acontecido é um corte de em torno de 20% nas verbas da segurança pública, que já implicou em diminuição de ações policiais, superlotação carcerária. Não há mais horas extras que são necessárias para garantir alguns serviços da polícia. Alguns postos de polícia estão sendo fechados. São consequências muito objetivas na redução do serviço de segurança pública e isso já gerou o aumento das taxas criminais. Aqui no Estado, então, a situação é mais grave, porque nesse último um ano e meio, a polícia diminui a sua ação, a criminalidade aumenta e a sociedade se encontra amedrontada. E quando a sociedade se encontra amedrontada, as saídas não são as melhores, porque as pessoas estão dispostas a aderir justamente a essa política de “bandido bom é bandido morto” porque elas não veem uma saída diante de uma degradação do serviço público de policiamento.
ON - Isso tem a ver com o “fascismo societal”, que o senhor abordou recentemente em um artigo? O que seria exatamente?
Essa é a ideia do Boaventura de Sousa Santos, que falou disso nos anos 90. Dentre as características da globalização neoliberal, está o enfraquecimento do estado, mesmo na área da segurança pública. Isso vai implicar na redução da capacidade do estado atuar, que, por conta disso, o estado não tem como atuar e isso gera um medo social, insegurança. Aí, então, as pessoas acabam aderindo a essa ideia de que, para certos grupos sociais, se deve suspender a Constituição e os diretos porque são criminosos e têm que sofrer as consequências e se o estado atuar dentro da lei, ele não vai dar conta do recado. Na verdade, o problema é da estrutura que falta, que é decorrente dos gastos estatais. Mas a decorrência, do ponto de vista da opinião pública, é a exigência de uma ação mais violenta, de uma ação menos de acordo com as regras que deveriam orientar o trabalho da polícia. E isso pode ser caracterizado como “fascismo societal”, que é uma falta de qualquer preocupação com o outro, na medida em que ele seja rotulado como criminoso.
ON - E como melhorar a situação da violência no Brasil?
Nós temos duas maneiras de lidar com isso. O primeiro é a prisão preventiva: 40% dos presos dos presos brasileiros são presos provisórios. E ficam presos durante um ano, um ano e meio, até que sejam julgados. Às vezes eles são absolvidos ou pegam uma pena que já deveriam ter cumprido diante dessa prisão preventiva, que muitas vezes é abusiva, não precisaria ter ocorrido. Segundo: a questão do tráfico de drogas e da política de drogas. Em torno de 30% dos presos masculinos e 60% das presas femininas, estão presos por serem pequenos traficantes de drogas. Será que isso traz alguma vantagem? Esse tipo de encarceramento reduz o consumo, reduz o tráfico? Sabemos que não. E, pelo contrário, acabam fortalecendo as facções dentro dos presídios. Então, temos 650 mil presos hoje, é preciso garantir as vagas, mas nós temos em torno de 350 mil vagas. Ou seja, o déficit é muito grande. Então para dar conta disso, nós sabemos que o estado não vai investir para ampliar as vagas a curto prazo. Então é preciso uma política para redução do encarceramento e dar prioridade para crimes contra a pessoa e outra política para lidar com os crimes de menor potencial, de tráfico de drogas e outra política para lidar com a prisão provisória, que deveria ser evitada. Há uma lei no Brasil que dá outras alternativas ao juiz, como monitoramento, apresentação regular do acusado. Por tanto, não precisaria havia esse excesso de prisões provisórias, que acabam apenas acentuando os vínculos do indivíduo com a criminalidade.
ON - Como o senhor avalia o papel da mídia na cobertura dos casos de violência?
É uma questão complexa. Por um lado, é fundamental que a mídia divulgue tanto dados de criminalidade, políticas de enfrentamento do problema, mas claro que há bastante sensacionalismo. O que seria uma coisa interessante é qualificar o debate, não em termos de um bandido X, um bandido Y. Mas, sim: “Taxa de crimes é essa, está aumentando ou diminuindo, as políticas que estão sendo feitas são essas”, enfim. Isso seria uma forma mais racional da mídia fazer a cobertura desse tema. Por outro lado, hoje, falar em mídia é falar em redes sociais. De fato, aí tem uma área de estudos que precisa ser aprofundada, porque é tudo muito novo. Mas essa coisa dos discursos de ódio, e como tem circulado e fomentado conflitos e situações que o próprio estado tenha que reagir a essa demanda social por justiça, isso não foi ainda bem entendido e acho que vamos levar um bom tempo para conseguir compreender e lidar com esse fenômeno.
ON - Então falta preparo à imprensa?
Isso se relaciona com a ideia de que a polícia é a principal fonte. Muitas vezes, os policiais vazam informações privilegiadas, que já “condena” antecipadamente, mas depois se vê que a coisa não era bem assim. A polícia não é uma fonte privilegiada, ela é um ator no contexto da segurança pública, que tem que ser tratado como tal pela imprensa. As coisas já foram piores. Já há uma nova modalidade de mídia nessa área. Temos exemplo de jornal popular em Porto Alegre, que tem feito um trabalho não sensacionalista, mas de dar visibilidade a vítimas de crimes das áreas urbanas pobres. Esse é um papel muito mais interessante e que qualifica o debate e tira da invisibilidade aquelas que são as maiores vítimas da criminalidade e mostra que a mídia pode ter um papel democrático, de qualificação dessa discussão.
ON - Como o momento político atual dá força a discursos pró-desarmamento, a ideias, como, por exemplo, de que “bandido bom é bandido morto”?
O processo de impeachment conseguiu juntar o centro e a direita. Nos últimos 14 anos ocorreu um processo político em que a esquerda conseguiu atrair o centro e montar um programa de governo. Hoje, os setores descontentes conseguiram se agregar, muito em virtude da crise econômica. Porque aí há uma base social, que está mais aberta a aderir um discurso de opinião. Só que o discurso mais visível dessa oposição é o discurso da direita, que é um discurso até fascista desses grupos, que aplaudem torturadores, que elogiam a ditadura militar e que dizem que direitos humanos é defesa de bandido. Eu ainda acredito que isso não é majoritário, pelo contrário, que isso é a representação de um pequeno setor do eleitorado brasileiro, de entorno de 10%, mas que pode crescer, tendo em vista o fracasso das políticas de segurança. Ou seja, quanto pior estiver a política do estado nessa área e maiores forem os crimes, mas espaço haverá para esse discurso, que é populista, irracional, mas que as pessoas aderem porque estão com medo e, então, esse discurso parece atrativo.