O título deste texto não é inédito. É reprodução da manchete utilizada pela jornalista Fátima Trombini quando registrou em O Nacional, uma das primeiras matérias sobre o quinto filho da dona Heloisa Almeida: o Comitê da Cidadania Contra a Miséria, a Fome e pela Vida. Com quase 90 anos, ela fala do trabalho de décadas com a mesma lucidez que uma mãe relata os primeiros passos e as primeiras palavras de um filho. As unhas bem feitas, pintadas de um rosa que lembra coral, enfeitam as mãos que durante uma vida inteira se dedicaram a ajudar ao próximo. O sorriso franco e o saudosismo ao lembrar das histórias vividas são sinais de quem construiu uma história de sucesso.
A ideia inicial era simples: recolher alimentos doados por restaurantes, supermercados e feirantes e aproveitá-los para alimentar famílias carentes. Dona Luiza era como a chamavam os desavisados que recorriam ao Comitê durante os mais de 20 anos em que ele funcionou. Hoje, ela está impossibilitada de realizar o serviço social que sempre desempenhou, por motivos de saúde, e ninguém está autorizado a arrecadar doações em seu nome. Mesmo com orgulho pelo que fez, a humildade é uma marca. “Eu sou pequena não posso fazer coisa grande”, brinca ao iniciar a história sobre como começou o trabalho social.
Dedicação ao próximo
Embora o Comitê da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida seja a principal lembrança quando se fala do trabalho de dona Heloísa, a preocupação e a dedicação ao próximo fizeram parte de toda a vida dela. Com 18 anos, recém-casada e ainda moradora do Distrito de Coxilha, hoje município, ela organizou a festa de Natal para filhos de trabalhadores que talvez não tivessem condições de proporcionar uma atividade assim às crianças. E desde então não parou, sempre permaneceu envolvida com organizações sociais.
Na década de 1960 ela chegou a iniciar um projeto parecido com o realizado pelo Comitê para arrecadar alimentos e distribuir aos pobres. Sem saber a quem pedir ajuda, ela recorreu ao comandante do Batalhão do Exército que existia em Passo Fundo. Os militares a ajudaram por um tempo, no entanto, com o Golpe de 1964 o apoio cessou e teve de parar com o projeto. Ela permaneceu envolvida com ações, especialmente voltadas a apenados do presídio de Passo Fundo, portadores de HIV, alcóolatras, entre outros setores carentes da sociedade.
O embrião do Comitê
Já na metade da década de 1980 ela recebeu a sugestão de um conhecido para participar de reuniões que estavam sendo organizadas por lideranças políticas e autoridades que buscava criar um projeto de auxílio a pessoas em situação de vulnerabilidade. “Cheguei, sentei e fiquei escutando”, lembra. Como não viu andamento do projeto, tomou a iniciativa e começou a buscar ajuda. Primeiro conseguiu que a Prefeitura cedesse um caminhão por algumas horas do dia para recolher as doações. O foco eram supermercados, restaurantes, hotéis e feira. “Não queríamos onerar ninguém. Cada um dava aquilo que podia e ninguém estava autorizado a pedir nada específico”, explica.
Trabalho nas vilas
Os alimentos arrecadados eram levados para as vilas e distribuídos. “Quando as crianças enxergavam a comida levavam a mão pra comer, loucos de fome”, destaca contando que a primeira região da cidade ajudada foi o Zachia. Mais tarde passou a fazer o sopão que era entregue tanto no ônibus, quanto na sede do Comitê que funcionava no espaço entre a Biblioteca Municipal e o Teatro Municipal Mucio de Castro. O sopão era distribuído em caixas de leite higienizadas e cortadas, ideia inspirada em trabalho semelhante desenvolvido em Porto Alegre. Alguns faziam a refeição lá mesmo, outros levavam para casa.
Ela conta que havia uma pessoa que sempre ia pegar a sopa com alguns cães e um dia resolveu observá-lo. “Ele ia e pegava a sopa pra ele e também para os cachorros. Ele se afastava e dividia com eles”, conta. A realidade e os comportamentos de quem ia até o Comitê em busca de alimento eram as mais diversas. Isso exigia, a todo momento, o jogo de cintura para lidar com situações adversas. Às vezes, alguma pessoa alcoolizada chegava mais exaltada, e com paciência ela conversava e a colocava para dormir em algum lugar para que o efeito do álcool passasse.
Várias etapas
Embora a ideia inicial foi a de recolher alimentos e dar a quem precisava, conforme o trabalho teve andamento ele foi aprimorado e modificado para atender novas demandas. “Pensei que só dar as coisas não era certo. Organizei uma reunião para as mulheres e elas começaram a fazer trabalhos artesanais e começamos a recolher sobras de tecidos em indústrias de confecção. Elas foram aprendendo uma com a outra a fazer artesanato”, acrescenta.
Intervenções para a confecção de Carteiras de Trabalho também foram realizadas para incentivar as pessoas a procurarem emprego. Lembra-se do dia em que mandou as pessoas aprenderem a “colar tijolo”, como ela se referia ao serviço de pedreiro e um homem embriagado ficou brabo e saiu xingando ela. Alguns dias depois ele voltou arrependido. “Dona Luiza a senhora me perdoe que eu sai louco de raiva aquele dia, xingando a senhora. Acredita que eu estou empregado? A senhora me deu aquele corridão e eu sai louco de raiva lhe dizendo palavrão e agora eu quero lhe pedir perdão e agradecer”, relata.
Maior aprendizado
De todos os anos em que trabalhou com pessoas, muitas histórias foram vivenciadas o que permitiu a ela também aprender muitas coisas, mas quanto questionada sobre qual o principal ensinamento, ela não pensa duas vezes antes de responder: “o amor ao próximo”. Esse aprendizado que ela buscou replicar ao longo dos anos é também parte de uma missão. Ela sempre seguiu o Espiritismo e conta que em uma sessão teve um pensamento que anotou em um papel: vás dando e, na medida que fores dando, irá menos pesando o fardo que terás de carregar. “Era uma missão para mim, mas meu fardo nunca foi pesado”, completa.
Uma oportunidade maravilhosa
Dona Luiza Silva dos Santos, 55 anos, trabalhou durante cerca de 15 anos com a dona Heloísa no Comitê da Cidadania. Tudo que ela ganhava, desde roupas, sapatos, frutas e outros alimentos, era repartido com os vizinhos que também precisavam. “Com o salário que eu ganhava não conseguia comprar frutas e desde que entrei no Comitê eu só tive coisas boas pra mim e para meus vizinhos”, reforça. O aprendizado durante os anos de convivência foi uma constante. “Sempre disse que ela era a mãe que eu não tinha mais. Ela era muito exigente, mas a cobrança a gente sabia que era pelo bem. Meu principal aprendizado foi amar o próximo em primeiro lugar e isso sempre passei aos meus filhos. Amo muito ela, do fundo do meu coração”, completa.
“O que a gente precisou ela ajudou”
A senhora Lídia Oliveira, 63 anos, também pôde contar com o trabalho da dona Heloísa. Se não foi tão próximo, não foi menos marcante na vida dela. “Ela é uma boa pessoa e o que a gente precisou ela ajudou, gosto muito dela”, afirma. Lídia relembra ainda a forma educada com que dona Heloísa tratava as pessoas. “Que Deus dê muita saúde pra ela, felicidade e paz. Eu não tenho mãe, mas tem as pessoas que eu gosto muito, e ela é uma delas”, finaliza.