OPINIÃO

As rédeas da própria vida

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O que as narrativas têm a ensinar sobre a vida? Tomemos por exemplo os contos de fadas e uma história não muito conhecida do público em geral: Pele de Asno.

Contos de fadas são histórias baseadas em situações e questões que afetam o dia-a-dia  – pobreza, sofrimento, felicidade, conflitos familiares –  pinceladas com metáforas e elementos mágicos que as removem do mundo concreto e imediato e as transportam para uma dimensão simbólica e universal, o que as torna mais digeríveis para nossos delicados e muitas vezes frágeis “estômagos” emocionais.

Pele de Asno foi coletada do folclore popular e escrita pela primeira vez por Charles Perrault, no século XVII: em seu leito de morte, a rainha pede ao rei que somente se case novamente com a mulher que a igualar em beleza. O rei concorda e anos mais tarde, decide casar-se com a própria filha pois, segundo ele, é a única que se iguala à rainha. Desesperada, a princesa tenta demover o pai dessa resolução tão terrível e lhe pede presentes aparentementes impossíveis de serem encontrados. O pai os traz, um após o outro, exatamente como a filha havia pedido. Como última tentativa, a menina pede o couro do asno de estimação do pai, um animal mágico, que defecava ouro. Para horror da princesa, no dia seguinte a pele do animal é entregue em seus aposentos.  Ela então decide fugir, cobrindo-se com essa mesma pele para não ser reconhecida, mas levando seus presentes, para não se esquecer de sua origem.  Após vagar pela floresta, Pele de Asno, como passa a ser chamada, é contratada por um casal de camponeses para fazer trabalhos pesados. Ela os executa da melhor forma possível e logo ganha a estima do casal. Daí até aceitar casar-se com um príncipe que se apaixona por ela apesar de sua aparência abjeta é apenas uma questão de tempo.

O conto choca por trazer à tona a questão do incesto, porém mais que chocante, é uma história de vitória e superação interior, em que a vítima, aparentemente frágil, consegue se afastar de seu agressor e recomeçar a vida. Desde o início da decisão descabida do pai, a princesa (em algumas versões com auxílio mágico) passa a criar empecilhos para o casamento. Quando vê que nada fará o rei desistir de seu objetivo, não hesita em fugir.

É interessante pensar, também, que a pele em questão é mais do que uma fonte de calor ou proteção para o corpo, ou até um disfarce. Faz, na verdade, o papel de capa mágica, que permite à princesa ingressar em uma parte mais profunda de si mesma. É uma vestimenta para uma viagem interior. Despida de tudo que a liga à beleza, só lhe resta a essência humana e é com essa essência que ela sobreviverá. Sozinha na floresta, suja e vestindo uma pele de burro, a moça toma posse de seu próprio destino com a resiliência daqueles que optam pela vida.

Pele de Asno traz nas entrelinhas uma mensagem positiva para as mulheres:  ninguém é dono de ninguém, as vítimas são vítimas, e não a causa dos abusos, e sempre é possível recomeçar. Não é surpreendente que os estúdios Disney a tenham ignorado, pois o desconforto que essa história causa nas mentes mais conservadoras é muito grande.

Assim como este conto, há muitos outros pouco conhecidos e pouco falados. Em vez de passivamente aguardar que venham até nós pelas mãos de algum estúdio de cinema, podemos lê-los e fazer, por nossa própria conta, o trajeto até o interior de nós mesmos. Fica aqui o meu convite. Boa leitura!

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