A infância é um lugar complexo. Para os adultos, é a lembrança daquele espaço em que moramos quando ainda não tínhamos muita memória. Aqueles dias e noites que se sucediam sem grandes planos em um corpo que mudava diariamente. Muito grande. Muito pequeno. Muito alto. Muito baixo. Entretanto, ao contrário do que somos levados a pensar, não é um tempo que já passou; é, outrossim, uma localização interna que muitos acabam esquecendo, mas de onde, volta e meia, recebemos mensagens cifradas do que fazer com nossa vida.
Em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, a menina Alice, entediada, seguiu um coelho até sua toca e lá encontrou algo totalmente novo. Um espaço onírico que reproduzia suas ansiedades e ensinava-lhe a buscar dentro de si mesma recursos que a permitissem seguir em frente. Tentando fazer sentido de onde se encontrava, foi protagonista de uma experiência fantástica de descoberta: viver não é fácil, às vezes a vida é um jogo de cartas, outras vezes é puro nonsense, mas, mesmo assim, vale muito a pena.
Na versão para o cinema, de Tim Burton, já adulta, prestes a embarcar em um casamento arranjado, com um noivo patético, Alice se deixa conduzir novamente a esse espaço que lhe é familiar, mas do qual não lembra quase nada. É um lugar que fica no jardim, no buraco de uma árvore e, pasmem, onde mora um coelho de cartola e relógio!
É lá que ela, lembrando aos poucos de que já os conhecia, encontra velhos amigos que são rápidos em tecer críticas a seu respeito, dizendo, inclusive que ela é a Alice “errada”. Mas é a crítica do Chapeleiro Maluco que a atinge em cheio: você não é a mesma de antes, você era muito mais “muita”, você perdeu sua muiteza. Lá dentro. Falta alguma coisa. De todas as coisas que Alice esqueceu desse lugar, talvez essa lembrança seja a que faça mais sentido. No decorrer da narrativa, ao encontrar a Alice “certa” dentro de si mesma, ela consegue enfrentar e derrotar o terrível monstro Jaguadarte.
A criança que fomos ocupa um espaço dentro de nós, nesse acúmulo de experiências que é a vida. É nesse espaço que guardamos os joelhos ralados, as descobertas, os medos, a alegria e, principalmente, a força que nos impulsiona para a frente. Muitos de nós já esqueceram o trajeto para esse lugar. Estamos ocupados demais com as coisas grandes para tentar encontrar uma toca de coelho que nos leve para dentro da nossa própria “terra”. Então vivemos assim, sempre muito ocupados, sempre muito atrasados, com coisas sérias e importantes a fazer. E vagamos. Vagamos pelo mundo com medo de nossos monstros imaginários e com alguma coisa faltando. Lá dentro.
É na infância que mora a nossa muiteza. Sem o honesto e verdadeiro reconhecimento desse valioso espaço interno, ficamos sem recursos para buscar forças quando a vida adulta nos puxa ou empurra demais. Como aprendemos com Alice, um pouco de coragem, curiosidade e loucura é tudo o que precisamos para encontrar nosso caminho. Ah, e um Coelho com um relógio também. Boa sorte!