- Você sabe que eu amo você, disse a Outra Mãe.
- Você tem um jeito muito estranho de demonstrar isso, respondeu Coraline.
Coraline é uma história de Neil Gaiman que une questões profundas sobre o amor parental a elementos dos contos de fadas tradicionais: há uma mãe monstruosa, um gato misterioso e uma heroína que precisa crescer. Há também uma questão que permeia toda a narrativa: o amor materno é sempre verdadeiro? E essa questão a torna, igualmente, uma história de terror.
Coraline muda-se com os pais para uma casa antiga, longe de sua cidade natal. Seus pais são carinhosos, mas distraídos e preocupados com seu trabalho, então ela tem que dar conta sozinha de como ocupar seus dias. Curiosa, explorando a casa, encontra uma porta secreta que, ao ser aberta, a leva para outro mundo, idêntico ao mundo real, mas onde há uma “Outra Mãe” muito simpática. À medida que a narrativa avança, vamos entendendo, junto com a heroína, que essa mãe aparentemente boazinha é, na verdade, muito temperamental e egoísta: no início calorosa e acolhedora, rapidamente se torna cruel e sádica quando Coraline começa a contrariá-la e a desafiá-la, chegando, inclusive, a sequestrar os pais verdadeiros da menina. Contando com sua notável perspicácia, e também com a ajuda do argucioso gato preto, que lhe guia pelos caminhos desse mundo alternativo e assustador, Coraline consegue escapar das garras dessa outra mãe e salvar sua mãe real, ocupada, imperfeita, mas sinceramente amorosa.
Como todas as crianças, Coraline consegue, mesmo que não o demonstre, distinguir o amor falso do verdadeiro, que não é um amor de posse, mas de libertação. A mãe que ama os filhos só pelo que os mesmos podem lhe proporcionar – preenchimento de vazios, popularidade, juventude, atenção e/ou gratidão do cônjuge - os ama apenas na medida em que satisfaçam seus desejos. Ao menor sinal de que não está sendo o centro das atenções, essa mãe, a exemplo da Outra Mãe, mostra o que está por trás da máscara: uma ogra faminta.
Todas temos muitas contradições e ambivalências dentro de nós, mas essa não é realmente a questão. O que importa é conseguirmos dirigir um olhar honesto para nossos filhos e não torná-los um prolongamento de nós mesmas, um brinquedo a nosso dispor. Mães são seres imperfeitos e que erram, mas jamais devem ser manipuladoras e dissimuladas. A negligência predatória e sufocante – sim, isso acontece - produz o que há de pior nos relacionamentos. O amor verdadeiro não sufoca nem negligencia, ele liberta, independiza e mostra os caminhos.
Coraline optou por uma mãe real, mas há muitas crianças que não tem essa opção. A Outra Mãe é tudo o que elas têm. Só nos resta torcer que algum dia desses apareça um gato preto em suas vidas e lhes mostre, com um afeto genuinamente felino, aquele que nunca pede nada em troca, o caminho da liberdade.