OPINIÃO

Joana Picareta

Por
· 2 min de leitura
Você prefere ouvir essa matéria?
A- A+


Nunca mais esqueci a presença daquela mulher na minha infância. Negra esbelta, já mostrava sulcos de sofrimento num semblante severo que eu imaginava nunca se descontraísse para sorrir. Vestidos longos, camisetas manga longa e coletes de cores berrantes. Canela fina e corpo sempre reto, tranças longas e presas, magra, e tornozelos enfeitados com argola (de osso) sendo uma delas espécie de chocalho. Meus pais tinham hotel na localidade de Santa Cecília, próximo a Tapejara. O velho, descendente italiano, de olho azul celeste, recebia a todos na casa, com a mesma consideração e apreço. A mentalidade cultural da época não era assim tão fraterna, e não raro meus pais enfrentavam estupidez de algum gringo que se julgava superior...Ainda não sei o porquê! Enfim, tanto meu pai como minha mãe acolhiam a todos na casa enorme, que era pousada, bodega, rodoviária e abrigava consultório odontológico. E Joana Picareta morava sozinha numa casinha de chão batido. No centro do casebre uma trempe e o tição entre as rústicas paredes de uma espécie de fogão barreado fumegando sempre. Ela conhecia ervas do mato para curar muitos males. Por isso minha mãe encomendava algumas folhas colhidas por Joana, que conhecia o mato como a palma da mão. Conversava com as plantas. Quando caminhava pelo vilarejo era acompanhada por meia dúzia de cães barulhentos que só silenciavam quando dizia palavras que só ela conhecia. Freqüentava nossa casa e tinha intimidade para entrar direto na cozinha, onde conversava com minha mãe. Nunca a vi sentar-se numa cadeira. Preferia sobre a caixa de lenha, ou no piso de madeira. Dizem que viveu mais de 100 anos.

Com ternura
Sem papas na língua, freqüentava vários ambientes. Desafiava posturas em voz elevada e decidida, sempre com ar próprio de dignidade. Abençoava as crianças e benzia adultos incomodados com alguma dor rezando em rimas ao Senhor e São Miguel Arcanjo. Dizia-se que era filha de escravos vindos da África. Revelava uma identidade atávica nas danças em círculo e canções. Um de seus costumes que mais impressionava era o momento em que meu velho pai sangrava um boi e Joana surgia lépida com uma caneca na mão aparando as golfadas de sangue que bebia ainda quente. Ninguém contestava o ritual inusitado. Havia temor místico quando indignada, sempre contra algo injusto. Um dia, tinha cinco anos, e um cachorrinho de estimação que voltou para casa com enorme vergão no lombo, torturado por alguém que jogou água quente. Desatei o choro. E Joana se comoveu. Irritada andou furiosa pelas ruas bradando maldições a quem tivesse ferido o cachorrinho. Depois voltou e acariciou o menino chorão, acalmando com um sinal na testa. Enorme alívio. Foi um bálsamo de caridade.

Lições de vida
Joana era temida, sim, indignando-se com a injustiça e prepotência. Nunca se soube de onde veio, mas seu desassombro e o olhar de doçura, com tanto fervor e dignidade, nos fazem pensar que Deus se revela através de pessoas, como Joana Picareta, negra iluminada que conviveu em nossa casa.

Cultura Artística
A Cultura Artística de Passo Fundo traz mais um espetáculo primoroso, neste sábado, dia 30, às 19hs no auditório do Fórum. Recital e violão terá a exibição da soprano Andiara Munbach e o violonista Marcel Estivalet. Ingressos podem ser adquiridos na Secretaria da Catedral, na Livraria Nobel (General Osório), ou diretamente com a Cultura Artística (fone 99121585). Custo de ingresso é R$ 30,00 ou dois por R$ 50,00. Haverá homenagem a Selma Costamilan e Maria Luciana Busato Bueno. Será rara oportunidade de apreciar ao vivo um monumental espetáculo artístico.


Psicopatas
Há infestação de psicopatas e deturpados de todo gênero que atuam em chacinas e abomináveis crimes. Além do abandono infantil e seqüelas das guerras, espalha-se rapidamente a deformação de caráter. Ausência de valores da vida é campo fértil para a banalização do assassinato.

 

Gostou? Compartilhe