OPINIÃO

Embate de mitos

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Não encontrei melhor expressão que embate de mitos para sintetizar o livro “Cachorros de palha”. Nesta obra, o escritor britânico John Gray traz para discussão uma série de reflexões sobre como nós humanos nos vemos frente aos outros animais (ou outras formas de vida). Especialmente a visão ocidental de uma superioridade forjada a partir de uma prática religiosa judaico-cristã e, em tempos mais recentes, pelo poder da ciência. Não é apenas outro livro, ao estilo dos escritos por descrentes raivosos, questionando a existência de Deus e a religiosidade das pessoas. Trata-se de uma reflexão sobre filosofia e ciência e, particularmente, sobre o papel do homem no mundo.
Admite-se, não sem questionamentos, que a ciência suplantou a religião como fonte de autoridade nos tempos modernos. Essa autoridade advém do poder que o homem, via conhecimento, adquiriu sobre o ambiente (incluam-se tudo que o cerca, outras criaturas vivas inclusive). Tal fato se presta sobremaneira para o surgimento de mitos, que na prática não se comprovam, e servem para corroborar ainda mais a visão do homem como ser superior. É o caso em que, cientistas ou pretensos, nos tentam fazer acreditar numa visão (romantizada) de ciência como busca desinteressada da verdade. A comunidade científica e suas corporações, tal qual a Igreja no passado (lembrem-se dos tribunais da Inquisição), também tem seus meios para silenciar hereges e abafar pensamentos independentes e dissonantes (via editais de financiamento de pesquisa, por exemplo). Lamentavelmente, o progresso moral da humanidade não acompanhou o progresso científico.
O poder da ciência contribuiu para fortalecer o antropocentrismo. Isso deu respaldo à idéia fantasiosa de que nós humanos somos diferentes de todos os outros animais (em alguns aspectos sim, mas em outros não), surgindo, a partir de fragmentos do mito cristão, o humanismo quase como religião secular. De fato, nossa racionalidade nos diferencia de outros seres vivos (apesar de nos assemelharmos em termos de estrutura, padrão e processo da vida). Negamos Darwin, nos dissociamos do mundo natural e assumimos o pecado capital do cristianismo nos diferenciando radicalmente de todos os outros animais. A nossa evolução culminou com a devastação (em parte) do mundo. Libertamos-nos da crença irracional na divindade e depositamos uma fé incondicional na humanidade. Deixamos de lado o livre-arbítrio e assumimos a autodeterminação.
Somos diferentes dos outros animais porque podemos visualizar nossas mortes. Temos consciência do nosso fim e por isso resistimos o passar do tempo. Os animais não humanos não vivem oprimidos pelo tempo. Buscamos um propósito de vida, somos caracterizados pela obsessão, pelo autoengano e por um perpétuo desassossego. Sabemos que vamos morrer (essa é nossa certeza) e especulamos sobre o que pode vir depois. Queremos nos libertar desse destino e, como a ciência e a tecnologia não conseguem dar a resposta que gostaríamos de ouvir, nos apegamos na fé religiosa e na crença de que há algo depois da morte. Vale refletir sobre a bem conhecida frase do teosofista alemão Rudolf Steiner, que disse que quando alguma coisa acaba, devemos pensar que outra coisa também começa. Com a morte acaba a vida, mas o que estaria começando?
John Gray realça crenças arrogantes e equivocadas sobre nosso lugar no mundo. Demonstra ser adepto da teoria de Gaia e acredita que a tecnologia nos poupe da vingança de Gaia, mas ao custo da criação de uma nova era geológica, a Eremozóica (Idade da Solidão), na qual pouco restará sobre a Terra além de humanos. Nos deixa como mensagem uma imagem aterradora. Mostra que, diante de Gaia, os humanos nunca podem ser nada além de cachorros de palha (animais usados como oferendas aos deuses nos antigos rituais chineses. Durante o ritual, eram tratados com a mais profunda reverência. Quando terminava, e não sendo mais necessários, eram pisoteados e jogados fora.)

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